Opinião

Edição nº1545 – sexta-feira, 2 de junho de 2023

O Veado e as Lebres

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

 

“O Papa! Quantas divisões ele tem?”

(Joseph Vissarionovich)

Pilchados, com suas meias bizarras, dois caçadores partem ao encalço da exuberante criatura que irá saciar de forma definitiva seus vorazes apetites: um garboso, glorioso veado. Cada um por um caminho, em meio ao emaranhado de frondosa flora, de troncos que se erguem rijos, cada um na expectativa da ação do outro. Em meio ao caminho um dos caçadores se depara com uma arisca lebre ao alcance das mãos. “não tem tu, vai tu mesmo”, pensa o caçador. A magra, nada imperial lebre não é bem o que ele gosta, mas é melhor que nada. Segue ele de volta a aldeia, seu problema resolvido; o outro caçador ficará na seca sem ter o que comer, pois um só não dá conta de caçar o veado.

Este problema de teoria dos jogos, Stag Hunt, vem de uma história contada por Rousseau no Discurso sobre a desigualdade. Basicamente, ela é como se fosse um Dilema do Prisioneiro, no qual você mudou o incentivo para não cooperar para um em que ambos cooperarem é o melhor resultado. Mas se é assim, qual o sentido? Imediatismos, incapacidade de segurar a fissura de comer o marshmellow, desconfiança sobre seu parceiro: tudo isso pode levar a uma situação como a formalizada nesse jogo.

Guardemos esse ingrediente.

Presidencialismo de coalizão. Poucas coisas são tão mal interpretadas quanto esta brilhante percepção de Sergio Abranches, ideia pela primeira vez anunciada ao mundo numa salinha na Rua da Matriz na segunda metade dos 80, lançamento de um número da Dados que continha o artigo. Uma percepção de Abranches: um núcleo de três ministérios ficava ferreamente na mão do PSD, o maior partido de governo de praticamente toda a República de 46. Fazenda (a caneta que assina os cheques), Justiça (polícia e outros afazeres) e Viação e Obras Públicas (acho que dispensa explicações) estiveram sempre na mão do PSD.

O que é presidencialismo de coalizão? É a construção de um Executivo em que você busca uma aliança com a maioria do conjunto de governadores – que não necessariamente são da aliança que elegeu o presidente – e com a maioria do Congresso – que não necessariamente é da coalizão que elegeu o presidente. O resultado é uma maioria congressual para a maioria das situações cotidianas que vai muito além do necessário para se ter maioria. Isso produz um tipo de maioria não predatória e reduz o problema da exploração da minoria pela maioria... quê?

Você estará se perguntando, cara leitora, o que quer dizer essa última bobagem que escrevi. Fazendo um pequenopaulosplaining, imagine uma festa em que se decide se vai ter guaraná ou cerveja. E só vai ter um. Todos vão contribuir igual para a festa. A maioria quer cerveja. Quão maior a maioria dos que querem cerveja, menor a exploração de pessoas pagando por uma bebida que não querem (falo do coletivo, não do abstêmio individual).

Concretamente, partes do governo são entregues a grupos desta nova aliança que se constrói, após a eleição, para governar de fato. Não se faz essa coalizão em cima do que é a idealização das pessoas mais notáveis, brilhantes, seja lá que atributo individual você considerar. Faz-se em cima da relevância política de cada grupo.

Um bom exemplo disso, que testemunhei pessoalmente, foi Gastão Vieira de ministro do Turismo no primeiro governo Dilma. Gastão esteve aí no Banco, trazido pela equipe de Helena Lastres, um daqueles modestos e maravilhosos eventos que a equipe da Helena fazia. Um senhor simpático, inteligente, se você olhar o currículo dele você se perguntará: mas por que Turismo e não Educação ou C&T? Afinal, Dilma acabou o nomeando para presidente do FNDE, quando ele não era mais deputado. Gastão foi um deputado federal maranhense entrando no ministério numa cota da facção de Sarney. Isso dá, no máximo, cacife para o Turismo. Sim, os Sarney indicaram um dos seus melhores quadros, alguém que foi secretário de Planejamento e de Educação de Roseana e de Lobão. Mas ainda assim, Turismo era a cota que lhes cabia na aliança.

Gastão veio a romper com os Sarney para apoiar Dino. Totalmente entendo. Dino é brilhante, Dino, o Lacrador Geral da República, é de uma sagacidade ímpar. É só olhar a sutileza da emenda na Lei de Ficha Limpa que foi usada para podar as asas de Deltan. Brilhante! Não consigo imaginar nome mais perfeito para ministro da Justiça.

Não obstante, Dino é um erro, um erro crasso do governo Lula. Há mais erros, brilhantes erros políticos no governo Lula. Nísia talvez o mais significativo. Erros semelhantes, erros diferentes. Erros na forma como ministérios foram criados, erros na forma como foram ocupados. Vamos a alguns.

O senador Flávio Dino está ali meio que na cota pessoal de Lula, meio por ser um nome hoje reconhecido da política nacional. O apóstata Dino foi para o PSB para se livrar da pecha de “comunista”, visando a nacionalização de seu nome. Só que esse não é ministério que você entregue a um aliado, por mais competente, fiel, o que quer que seja esse aliado. Esse é ministério em que você põe um quadro político relevante e inteligente do seu partido: Armando Falcão, Fernando Lyra, Aloysio Nunes, Tarso Genro. Nenhum deles para sair dali candidato a presidente (por mais que Tarso sonhasse com isso). E Dino, quer fazer parecer a imprensa, é candidatíssimo. As articulações em torno de Dino serão um problema político para o governo. Administrativamente, há também o problema de não ter se retornado uma das raras boas medidas tomadas pelo governo golpista (e obviamente desfeita pelo governo “leite condensado” de Jair): a criação do Ministério de Segurança Pública. O ministério da Justiça era para ter sido esvaziado dessas atribuições corriqueiras e se dedicar à revisão para ontem da barafunda que se tornou o quadro jurídico brasileiro. Qual seja: negociar com o Congresso, com o STF, a recomposição dos limites deste poder de pessoas não eleitas que é o Judiciário.

Nísia, um nome excepcional, é um erro político de outra natureza. A pessoa tecnicamente talhada para construir e gerir uma política (policy) de saúde. Mas o que ela acrescenta em termos de política (politics) na saúde?  Quem acompanhou a eleição certamente tinha claramente outra mulher para o cargo: Simone Tebet. Tebet tinha que ser ministra, ponto. Diz a lenda queria o Desenvolvimento Social, mas isso o PT não entregaria. Mas saúde, que foi o principal tema dela de campanha?

Sabe aquele ingrediente que deixamos lá atrás, a caçada? Vamos voltar a ele. Os quadros do PT, este partido social-democrata moderno, constituído sem centralismo democrático e com movimento social, acaba sendo um bando de caçadores saindo felizes com suas lebres sem levar em conta que não é com elas que se constrói a política. Exemplo: se há algo que em muito se aproxima do espírito do antigo Ministério da Viação, certamente é o Ministério das Cidades. Olívio Dutra, fundador chave do PT, foi o primeiro dos dois ministros das Cidades do governo Lula. Na reorganização política em torno da questão do Mensalão, o ministério foi parar nas mãos de um quadro “técnico” indicado pelo PP e... e aí o ministério ficou nas mãos do PP. Até que no segundo governo Dilma, Kassab passou a cavalgar essa parte do “veado” (noutra, o incrível Joaquim Levi). Nem deu ano e meio e Temer era presidente. Hoje, há um Barbalho lá. Apostem num crescimento do MDB nas próximas eleições municipais. Apostem na relativa fidelidade do MDB.

Há mais erros em lebres assim? Certamente o esvaziamento do douto e polido Sílvio Almeida para criar o pro-ONGs de ministérios específicos para índios, negros e mulheres (Caê, faltaram os de padres, bichas e adolescentes) é um caso gritante desses. Sobrou o que para ele – debater com Damares, a qual agora parece ser mais um exemplo da questão do deep state que tratei semana passada?

Leitora, o presidencialismo de coalizão funciona.

O que não funciona é um partido de governo que, ao invés de ocupar as posições de exercício do poder, fica atendendo aos pet projects dos militantes do partido. Esse é um erro costumeiramente feito pelo PT, feito numa visão de que você constrói o futuro resolvendo os problemas imediatos que se tem pela frente. Se essa visão particular não se articula com – e se viabiliza apenas se – o projeto maior não for alcançado, se você se satisfaz com essas metas parciais, nada de grande vai acontecer. E se você abandona a partidos conservadores a capacidade de seduzir a vida política municipal, não estranhe o pífio desempenho nas eleições parlamentares.

O que não funciona é um partido de governo que entrega a elementos da burocracia – e dos aparatos técnicos/acadêmicos de um tema – o controle de uma posição que é política. Um ministério é político, um ministério é uma relação de compromissos. Se você abandona aos técnicos os assuntos técnicos, eles acabam virando um partido que tem interesses próprios distintos dos seus, vide o Ministério Público, comando escolhido com suas listas tríplices, atuando para derrubar os governos do PT.

O que não funciona é que uma série de ministérios de assuntos relevantes, que até contribuem eleitoralmente para os partidos que os controlarem, mas não impactam no controle político do Estado, não estarem entregues a aliados relevantes vindos do Congresso. Educação, por exemplo, seria um bom caso de algo relevante a ser gerido por um aliado. As negociações no Congresso seriam muito mais fáceis com um senador da base lá, por exemplo. Mas sem esse tipo de envolvimento, de parceria, de compromisso, resta ao Legislativo lembrar que é um poder, e exercê-lo com um pé no acelerador.

 

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