O tocante artigo Meu
Brasil brasileiro, de
minha amiga Elena
Landau, publicado neste
jornal há alguns dias
(22/5), ativou em mim
umas memórias que
entendi que poderia ser
apropriado compartilhar
com os leitores. O
argentino Jorge Luis
Borges, um europeísta
assumido, tinha uma
frase deliciosa acerca
de si mesmo: “Soy un
europeo nacido en el
exilio”. Essa foi, muito
modestamente, por
analogia, minha sensação
acerca do Brasil. Pela
minha história, filho de
pais argentinos, tendo
nascido no Brasil e ido
morar em Buenos Aires
aos 10 meses de idade,
eu era “um argentino
nascido no Rio”.
Quando vim para o
Brasil, na adolescência,
eu o fiz deixando para
trás lembranças
associadas àquela época
sangrenta da Argentina,
uma das mais marcantes
sendo a do sumiço de um
primo distante. Ele
engrossara a lista dos
“desaparecidos” e, como
quase todos nela, nunca
mais voltou ao mundo dos
vivos. Ao se esvair no
ar, ele deixou a esposa
– minha prima –
grávida.
O pai – agora falecido –
dessa minha prima era um
prestigioso
cardiologista, que
trabalhava no Hospital
Militar de Buenos Aires.
Eram tempos terríveis e
ele convivia com a
suspeita de que,
provavelmente, em algum
momento deve ter tido
como paciente um dos
assassinos do seu
genro.
Vivendo minha prima,
após o desaparecimento
do marido, na incerteza
do que Alencar Furtado,
em discurso famoso no
Brasil, qualificara como
as “viúvas do quem sabe
se talvez”, o pai dela,
querendo que a filha
pudesse reconstituir a
sua vida e já com o neto
no mundo, ativou
contatos chave e
solicitou uma entrevista
com o comandante de um
dos principais comandos
militares. Deste,
dizia-se, emanavam as
decisões acerca de quem
poderia ser considerado
preso oficial e quem
estava destinado a algum
dos temíveis “voos da
morte”, que despejavam
os cadáveres dos
“desaparecidos” no Rio
da Prata.
O comandante recebeu-o e
disse então a frase que,
ouvida no relato do pai
da minha prima, nunca
mais me saiu da memória
e reapareceu algumas
vezes nos meus pesadelos
da juventude: “Doctor,
está usted hablando con
la persona justa. Yo soy
el administrador de la
muerte”. Essa era a
Argentina da qual minha
família escapou no já
longínquo ano de 1976.
Corta para o Brasil da
mesma época. Só soube do
episódio que vou relatar
há poucos anos, mas ele
aconteceu naquela época
e reflete com precisão o
contraste da situação
dos dois países.
No tempo dos militares,
no Brasil, existia a
“linha dura” e o que
esta chamava de
“melancias” (verdes por
fora, vermelhas por
dentro), na visão de
quem todo aquele que não
aderisse ao credo mais
radical era considerado
“comunista”. Em meados
dos anos 1970, a cúpula
do PCdoB havia sido
dizimada, num evento que
tinha deixado sequelas
negativas para o
governo. Depois disso,
um político, importante
liderança civil do
governo Geisel, recebeu
a visita de um desses
representantes da “linha
dura”. Sem meias
palavras, este lhe disse
o seguinte: “Nós sabemos
que você conhece o
pessoal do Partidão.
Pois bem, eles vão
realizar um encontro de
cúpula mês que vem. Eles
não sabem que nós
sabemos, mas nós
sabemos. Se esse
encontro ocorrer, não
vai ter jeito: eles vão
ser mortos. E nós não
queremos isso. Portanto,
peço-lhe um favor:
transmita essa
informação a eles, para
que esse encontro não
ocorra”.
Esse líder civil do
governo militar entrou
em contato com
emissários do Partido
Comunista Brasileiro
(PCB) e foi pessoalmente
se encontrar dias
depois, numa igreja de
Brasília, com um
representante pessoal de
Giocondo Dias, o líder
do partido na ausência
de Luiz Carlos Prestes,
então no exílio. Cada um
se ajoelhou para rezar,
a certa distância um do
outro para não ser algo
óbvio, e foi então que
esse deputado, liberal
das antigas, como Sobral
Pinto, transmitiu o
recado. O encontro não
se realizou e a vida dos
membros do Comitê
Central do Partido
Comunista foi poupada.
Muitos anos depois, já
adoentado, ambos idosos,
Giocondo Dias tocou a
campainha do apartamento
daquele político da
Arena. Sua mensagem:
“Venho lhe agradecer por
ter salvado a minha vida
nos anos 70”. Sempre que
conto a história me
emociono.
Costumo dizer, pela
experiência de vida que
já expliquei acima, que
não sou apenas
brasileiro: eu virei
brasileiro. Sendo o país
onde nasci um
desconhecido para mim
até os 14 anos, foi a
terra que acolheu a mim
e minha família. Por
contraste com o inferno
da Argentina daquela
época, o País pelo qual
nos encantamos é o
retratado nessa bela
história que relatei
acima: uma terra de
nuances, de
sensibilidade, de
humanidade, de
sentimentos nobres e de
afeto. O país em que,
mesmo num governo
autoritário, a “turma”
mais dura tentava
mitigar os conflitos e
havia algum respeito
pela diferença, cuidados
a tomar, diálogo e certa
classe.
Hoje, neste festival
diário a que assistimos
no noticiário, que
mistura agressividade,
grosseria, falta total
de empatia e a
exacerbação do conflito,
não reconheço mais o
País que nos recebeu.
Quatro décadas e meia
depois daquela época, a
pergunta que não quer
calar é: o que aconteceu
com o Brasil?
(*) Artigo publicado
originalmente no Estadão
em 03/06/2020.
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