Opinião

Edição nº1394 – sábado, 30 de maio de 2020

Legados e Caminhadas

Paulo Faveret

Economista do BNDES

“Hutte repetia que, no fundo, todos somos ‘homens das praias’ e que ‘a areia’ – cito seus próprios termos – ‘só guarda por alguns instantes as marcas dos nossos passos’”. Uma Rua de Roma, por Patrick Modiano 

PREÂMBULO. Em 2015, depois de mais uma grande mudança na minha carreira, publiquei parte do que se segue no LinkedIn. Os constantes desafios à identidade profissional me levaram a abraçar meus valores fundamentais como os pilares de minha trajetória. “Autogestão baseada em valores” de alguma maneira se tornou meu guia de ação, a cola que imagino manter íntegra minha trajetória. Mas isso provavelmente é apenas fogo fátuo produzido por ego ainda inflado, apesar de todas as lições que a vida oferece sem parar.  

Agora, em momento de profunda transição individual e coletiva, tento, bifronte como Jano, entender os recursos que me trouxeram até aqui e o que com eles farei nos tempos que se inauguram. Em meio a esse longo adeus organizacional, com aposentadoria à vista, me preparo para abrir novas portas, que jamais serão inteiramente novas, talvez renovadas.  

Como o título do belíssimo livro de R. Johnson e J. Ruhl, é necessário arquitetar maneiras de “viver a vida não vivida”, com reavaliação dos valores e, sobretudo, redefinição do papel do ego na condução de atos e pensamentos. Legados precisam ser honrados, mas eventualmente largados ao mar, para que sirvam aos outros, com sorte.  

TRANSIÇÃO E LEGADO. Períodos de transição normalmente inspiram reflexão sobre o passado e causam certa angústia em relação ao futuro. Muitas vezes o presente se torna instável e incômodo. A sabedoria consiste em apreciar o que passou, louvar o que merece ser louvado, aceitar os tropeços e seguir em frente. Adiante de nós provavelmente estará algo parecido com o que ficou para trás, não necessariamente na forma, mas semelhante na essência. Quase sempre buscamos as mesmas coisas ao longo da vida, embora elas se manifestem de variadas maneiras. 

A versão desalentadora de Patrick Modiano sugere serem inúteis todas as tentativas de “deixar” algo. Se as marcas dos passos logo são apagadas pelas ondas do mar, o que resta a fazer além de desfrutar os fugidios bons momentos? Escritos pela mão de algum nobre em um livro genealógico dos reis da Saxônia do século XVII, conservado no castelo de caça de Moritzburg, Schopenhauer encontrou os versos: 

“Amour véritable

Amitié durable

Et tout le reste au diable.” 

Mas talvez não devêssemos levar as sugestões de Modiano e Schopenhauer tão a sério. Eles mesmos as desconsideraram escrevendo livros que seguem vivos pelos olhos e mentes de tantos leitores. 

Felizmente os homens da Caverna de Chauvet tampouco se entregaram ao fatalismo. Em brilhante e comovente documentário – A Caverna dos Sonhos Perdidos –, Werner Herzog registra as obras-primas criadas por nossos antepassados 30.000 anos atrás. Lindas figuras de animais, algumas com imenso movimento, pintadas à luz de fogueiras. Queriam expressar respeito pelas forças da natureza? Registrar a beleza, demonstrando já ânsia pelo sublime? É difícil recuperar suas motivações. O fato é que nos legaram maravilhosas obras, que todos podemos apreciar pela arte de um contemporâneo, apesar de a visitação à caverna ser proibida ao público e restrita até para pesquisadores. 

De forma semelhante, os Inuítes, povos da região ártica da América do Norte, costumam construir marcos de pedra chamados Inukshuk. Essas estruturas evocam a forma de um ser humano com os braços abertos. São grandes e por isso funcionam como referência para os viajantes, auxiliando em sua jornada. A ajuda ocorre também na forma de utensílios depositados em pequenas caixas na sua base. Cada um que passa pode se valer das indicações de espaço e dos objetos ali estocados. 

Que bela maneira de compartilhar o essencial: informações, instrumentos e alimentos para a sobrevivência, além de beleza. Ao passar novamente por ali tempos depois, eu mesmo talvez me beneficie dessa prática, mas o desprendimento é tocante. Deposito algo para quem não conheço, imaginando que, se todos fizerem o mesmo, a comunidade poderá se manter e fortalecer. Indivíduos e comunidade em equilíbrio. Eu, os que vieram antes de mim, os que virão depois – todos nos encontramos no Inukshuk.

PERGUNTAS. Transições pessoais e organizacionais propiciam a oportunidade para realizar profunda reflexão sobre o que veio antes de nós, o que fizemos com o legado que recebemos e o que deixamos para os próximos. Sabemos ouvir as vozes dos que se foram? Temos olhos abertos para perceber a beleza da arte dos antepassados? Respeitamos o talento e o sofrimento dos que vieram antes de nós? Entendemos o contexto em que estamos? Enxergamos as janelas abertas e as portas fechadas que temos diante de nós? Temos a modéstia de saber que o mar apagará muitas das pegadas, mas que mesmo assim devemos caminhar? Deixamos auxílio e conforto para os que virão depois de nós? 

Em plena pandemia, algumas das perguntas de 2015 parecem ainda mais necessárias. Hoje mais que antes já não se trata de oferecer auxílio e conforto para os sucessores, mas para os contemporâneos. Aumento da solidariedade e redução da desigualdade estão na ordem do dia para muitos, infelizmente não para todos. 

CAMINHADA E TESTEMUNHO. Em um livro tão diminuto quanto belo, Caminhar, uma revolução, Adriano Labbucci diz que “caminhar é um pensamento prático que pode nos ajudar a romper esse círculo vicioso que alimenta medo e insegurança. Caminhar dá testemunho de que não há necessidade de temer o medo, dá um testemunho do cuidado e da atenção com os lugares pelos quais passamos, para que outros possam colocar-se a caminho como nós. Sim, testemunho. Palavra que caiu em desuso, encarada com arrogância e vista com desconfiança, não obstante não existir hoje valor mais alto em que confiar senão este: dar testemunho daquilo em que se acredita. De modo que, se queremos caminhar, não resta outra coisa a fazer senão nos pormos a caminho”. 

Testemunho é um legado de quem está em meio aos demais, com os outros, não separado deles.  Falar e fazer são elementos do testemunho. Não falar e não fazer, também, por vezes mais eloquentes do que seus positivos. Para testemunhar sobre o que acredito preciso caminhar, estar em lugar, engajado com o contexto. Uma ação reflexiva, no melhor estilo jesuíta, requer disciplina, método e coragem, elementos muito escassos no mundo das grandes organizações e, a se julgar pelo caos reinante, em muitos corações e mentes mundo afora. 

VALORES. Em 2009, recebíamos muitos colegas novos no Banco. Toda uma geração antiga estava de saída. Preocupados com transmissão insuficiente de conhecimento, propusemos ao VP a inserção de um projeto para redação e disseminação da Declaração dos Valores do BNDES. Com o auxílio da Fundação Dom Cabral, examinamos dezenas de documentos e planejamos entrevistar cerca de 20 empregados experientes, que se desligariam nos anos seguintes ou já aposentados.  Paramos as entrevistas na quinta pessoa porque todos diziam a mesma coisa: ética, compromisso com o desenvolvimento e excelência. 

Quando levamos o assunto a um seminário de dia inteiro com todos os superintendentes e diretores, os 30 presentes foram divididos em cinco mesas e tiveram uma hora para escolher três dentre os nove valores que apresentamos. Todas as mesas escolheram os mesmos três valores acima. Duas mesas sugeriram que espírito público precisava constar separadamente de ética e ficamos com quatro. O legado era cristalino e tamanha adesão aos valores indicava a razão deles não terem sido documentados até então: durante quase seis décadas, os moradores da casa benedense tinham tão claros seus valores que acharam supérfluo escrevê-los. Só quando novos habitantes chegaram em grande volume, os antigos pararam para sistematizar o que lhes parecia óbvio. 

O Ano dos Valores – 2010 – foi pensado para apresentação e disseminação da Declaração de Valores. Eu aprendi e me diverti imensamente com um trabalho cheio de significados, que ofereceu uma perspectiva rica sobre os elementos que mantiveram a organização unida até àquela altura. Gostaria de ter colocado os valores mais no centro do modelo de gestão, mas não foi possível (tema para outro texto). O importante é que registramos os componentes do legado que as gerações que se despediam quiseram deixar para as novas, que hoje formam a quase totalidade do quadro. Em algum momento será importante revisitar os valores de maneira sistemática e profunda para ressignificar, revigorar os laços emocionais que nos unem. Imagino que isso poderia contemplar contribuições externas, para que o Banco seja cada vez mais integrado ao meio ambiente do desenvolvimento.  

MUDANÇAS E TRANSIÇÕES. Porteiro do céu na mitologia romana, Jano era a divindade guardiã das portas. Suas duas cabeças correspondem aos dois estados das portas – abertas ou fechadas. Deus das mudanças e transições, olha para o passado e para dentro, para o passado e para o futuro, preside os inícios e os términos.  

Escrever sobre legados é refletir sobre o passado a partir do presente, com um olhar para o que virá. No dicionário analógico lê-se que o termo legado está associado a seis grupos de termos, tais como: mensageiro, consignatário, propriedade, transmissão e doação. O tempo presente é legatário do passado, que lhe fez chegar às mãos um conjunto de limites e possibilidades.  

Infelizmente, às vezes o passado dura mais do que o devido, até por apego dos indivíduos e organizações à “acumulação de velhos hábitos condicionados por experiências passadas e mantidos unidos pelos clipes de papel e pelos chicletes da memória” (R. Johnson e J. Ruhl). O “paradoxo da identidade” resulta do duplo efeito da ação de um ego que tenta estabilizar nossa existência, ao oferecer experiências seguras e previsíveis, reprimindo anseios e possibilidades, o que alimenta frustrações.  

Sobretudo em períodos de profunda transição, talvez seja preciso incendiar a barca da fantasia para que possamos sonhar novos sonhos, como sugere a deslumbrante e melancólica canção “O Pastor”, do grupo Madredeus. 

“Ai que ninguém volta

Ao que já deixou

Ninguém larga a grande roda

Ninguém sabe onde é que andou

 

Ai que ninguém lembra

Nem o que sonhou

E aquele menino canta

A cantiga do pastor

 

Ao largo ainda arde

A barca da fantasia

E o meu sonho acaba tarde

Deixa a alma de vigia

 

Ao largo ainda arde

A barca da fantasia

E o meu sonho acaba tarde

Acordar é que eu não queria” 

Compositores: Gabriel Rebelo Gomes / Rodrigo Leão / Pedro Ayres Fer Magalhaes / Francisco Manuel Pires Ribeiro / Maria Teresa Salgueiro

 

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