“Hutte repetia que, no
fundo, todos somos
‘homens das praias’ e
que ‘a areia’ – cito
seus próprios termos –
‘só guarda por alguns
instantes as marcas dos
nossos passos’”. Uma
Rua de Roma, por
Patrick Modiano
PREÂMBULO.
Em
2015, depois de mais uma
grande mudança na minha
carreira, publiquei
parte do que se segue no
LinkedIn. Os constantes
desafios à identidade
profissional me levaram
a abraçar meus valores
fundamentais como os
pilares de minha
trajetória. “Autogestão
baseada em valores” de
alguma maneira se tornou
meu guia de ação, a cola
que imagino manter
íntegra minha
trajetória. Mas isso
provavelmente é apenas
fogo fátuo produzido por
ego ainda inflado,
apesar de todas as
lições que
a
vida oferece sem parar.
Agora, em momento de
profunda transição
individual e coletiva,
tento, bifronte como
Jano, entender os
recursos que me
trouxeram até aqui e o
que
com eles
farei nos tempos que se
inauguram. Em meio a
esse longo adeus
organizacional, com
aposentadoria à vista,
me preparo para abrir
novas portas, que jamais
serão inteiramente
novas, talvez renovadas.
Como o título do
belíssimo livro de
R. Johnson e J. Ruhl,
é necessário arquitetar
maneiras de “viver a
vida não vivida”, com
reavaliação dos valores
e, sobretudo,
redefinição do papel do
ego na condução de atos
e pensamentos. Legados
precisam
ser
honrados, mas
eventualmente largados
ao mar, para que sirvam
aos outros, com sorte.
TRANSIÇÃO E LEGADO.
Períodos de transição
normalmente inspiram
reflexão sobre o passado
e causam certa angústia
em relação ao futuro.
Muitas vezes o presente
se torna instável e
incômodo. A sabedoria
consiste em apreciar o
que passou, louvar o que
merece ser louvado,
aceitar os tropeços e
seguir em frente.
Adiante de nós
provavelmente estará
algo parecido com o que
ficou para trás, não
necessariamente na
forma, mas semelhante na
essência. Quase sempre
buscamos as mesmas
coisas ao longo da vida,
embora elas se
manifestem de variadas
maneiras.
A versão desalentadora
de Patrick Modiano
sugere serem inúteis
todas as tentativas de
“deixar” algo. Se as
marcas dos passos logo
são apagadas pelas ondas
do mar, o que resta a
fazer além de desfrutar
os fugidios bons
momentos? Escritos pela
mão de algum nobre em um
livro genealógico dos
reis da Saxônia do
século XVII, conservado
no castelo de caça de
Moritzburg, Schopenhauer
encontrou os versos:
“Amour véritable
Amitié durable
Et tout le reste au
diable.”
Mas talvez não
devêssemos levar as
sugestões de Modiano e
Schopenhauer tão a
sério. Eles mesmos as
desconsideraram
escrevendo livros que
seguem vivos pelos olhos
e mentes de tantos
leitores.
Felizmente os homens da
Caverna de Chauvet
tampouco se entregaram
ao fatalismo. Em
brilhante e comovente
documentário – A Caverna
dos Sonhos Perdidos –,
Werner Herzog registra
as obras-primas
criadas por nossos
antepassados 30.000 anos
atrás. Lindas figuras de
animais, algumas com
imenso movimento,
pintadas à luz de
fogueiras. Queriam
expressar respeito pelas
forças da natureza?
Registrar a beleza,
demonstrando já ânsia
pelo sublime? É difícil
recuperar suas
motivações. O fato é que
nos legaram maravilhosas
obras, que todos podemos
apreciar pela arte de um
contemporâneo, apesar de
a visitação à caverna
ser proibida ao público
e restrita até para
pesquisadores.
De forma semelhante, os
Inuítes, povos da região
ártica da América do
Norte, costumam
construir marcos de
pedra chamados Inukshuk.
Essas estruturas evocam
a forma de um ser humano
com os braços abertos.
São grandes e por isso
funcionam como
referência para os
viajantes, auxiliando em
sua jornada. A ajuda
ocorre também na forma
de utensílios
depositados em pequenas
caixas na sua base. Cada
um que passa pode se
valer das indicações de
espaço e dos objetos ali
estocados.
Que bela maneira de
compartilhar o
essencial: informações,
instrumentos e alimentos
para a sobrevivência,
além de beleza. Ao
passar novamente por ali
tempos depois, eu mesmo
talvez me beneficie
dessa prática, mas o
desprendimento é
tocante. Deposito algo
para quem não conheço,
imaginando que, se todos
fizerem o mesmo, a
comunidade poderá se
manter e fortalecer.
Indivíduos e comunidade
em equilíbrio. Eu, os
que vieram antes de mim,
os que virão depois –
todos nos encontramos no
Inukshuk.
PERGUNTAS.
Transições pessoais e
organizacionais
propiciam a oportunidade
para realizar profunda
reflexão sobre o que
veio antes de nós, o que
fizemos com o legado que
recebemos e o que
deixamos para os
próximos. Sabemos ouvir
as vozes dos que se
foram? Temos olhos
abertos para perceber a
beleza da arte dos
antepassados?
Respeitamos o talento e
o sofrimento dos que
vieram antes de nós?
Entendemos o contexto em
que estamos? Enxergamos
as janelas abertas e as
portas fechadas que
temos diante de nós?
Temos a modéstia de
saber que o mar apagará
muitas das pegadas, mas
que mesmo assim devemos
caminhar? Deixamos
auxílio e conforto para
os que virão depois de
nós?
Em plena pandemia,
algumas das perguntas de
2015 parecem ainda mais
necessárias. Hoje mais
que antes já não se
trata de oferecer
auxílio e conforto para
os sucessores, mas para
os contemporâneos.
Aumento da solidariedade
e redução da
desigualdade estão na
ordem do dia para
muitos, infelizmente não
para todos.
CAMINHADA E TESTEMUNHO.
Em
um livro tão diminuto
quanto belo,
“Caminhar,
uma revolução”,
Adriano Labbucci diz que
“caminhar é um
pensamento prático que
pode nos ajudar a romper
esse círculo vicioso que
alimenta medo e
insegurança. Caminhar dá
testemunho de que não há
necessidade de temer o
medo, dá um testemunho
do cuidado e da atenção
com os lugares pelos
quais passamos, para que
outros possam colocar-se
a caminho como nós. Sim,
testemunho. Palavra que
caiu em desuso, encarada
com arrogância e vista
com desconfiança, não
obstante não existir
hoje valor mais alto em
que confiar senão este:
dar testemunho daquilo
em que se acredita. De
modo que, se queremos
caminhar, não resta
outra coisa a fazer
senão nos pormos a
caminho”.
Testemunho é um legado
de quem está em meio aos
demais, com os outros,
não separado deles.
Falar e fazer são
elementos do testemunho.
Não falar e não fazer,
também, por vezes mais
eloquentes do que seus
positivos. Para
testemunhar sobre o que
acredito preciso
caminhar, estar em
lugar, engajado com o
contexto. Uma ação
reflexiva, no melhor
estilo jesuíta, requer
disciplina, método e
coragem, elementos muito
escassos no mundo das
grandes organizações e,
a se julgar pelo caos
reinante, em muitos
corações e mentes mundo
afora.
VALORES.
Em 2009, recebíamos
muitos colegas novos no
Banco.
Toda uma geração antiga
estava de saída.
Preocupados com
transmissão insuficiente
de conhecimento,
propusemos ao VP a
inserção de um projeto
para redação e
disseminação da
Declaração dos Valores
do BNDES. Com
o
auxílio da Fundação Dom
Cabral, examinamos
dezenas de documentos e
planejamos entrevistar
cerca de 20 empregados
experientes, que se
desligariam nos anos
seguintes ou já
aposentados. Paramos as
entrevistas na quinta
pessoa porque todos
diziam a mesma coisa:
ética, compromisso com o
desenvolvimento e
excelência.
Quando levamos o assunto
a um seminário de dia
inteiro com todos os
superintendentes e
diretores, os 30
presentes foram
divididos em cinco mesas
e tiveram uma hora para
escolher
três dentre os nove
valores que
apresentamos. Todas as
mesas escolheram os
mesmos três valores
acima. Duas mesas
sugeriram que
espírito
público
precisava constar
separadamente de
ética
e ficamos com quatro. O
legado era cristalino e
tamanha adesão aos
valores indicava a razão
deles não terem sido
documentados até então:
durante quase seis
décadas, os moradores da
casa benedense tinham
tão claros seus valores
que acharam supérfluo
escrevê-los. Só quando
novos habitantes
chegaram em grande
volume, os antigos
pararam para
sistematizar o que lhes
parecia óbvio.
O
Ano dos Valores – 2010 –
foi pensado para
apresentação e
disseminação da
Declaração de Valores.
Eu aprendi e me diverti
imensamente com um
trabalho cheio de
significados, que
ofereceu uma perspectiva
rica sobre os elementos
que mantiveram a
organização unida até
àquela altura. Gostaria
de ter colocado os
valores mais no centro
do modelo de gestão, mas
não foi possível (tema
para outro texto).
O importante é que
registramos os
componentes do legado
que as gerações que se
despediam quiseram
deixar para as novas,
que hoje formam a quase
totalidade do quadro. Em
algum momento será
importante revisitar os
valores de maneira
sistemática e profunda
para ressignificar,
revigorar os laços
emocionais que nos unem.
Imagino que isso poderia
contemplar contribuições
externas, para que o
Banco seja cada vez mais
integrado ao meio
ambiente do
desenvolvimento.
MUDANÇAS E TRANSIÇÕES.
Porteiro do céu na
mitologia romana, Jano
era a divindade guardiã
das portas. Suas duas
cabeças correspondem aos
dois estados das portas
– abertas ou fechadas.
Deus das mudanças e
transições, olha para o
passado e para dentro,
para o passado e para o
futuro, preside os
inícios e os términos.
Escrever sobre legados é
refletir sobre o passado
a partir do presente,
com um olhar para o que
virá. No dicionário
analógico lê-se que o
termo legado está
associado a seis grupos
de termos, tais como:
mensageiro,
consignatário,
propriedade, transmissão
e doação. O tempo
presente é legatário do
passado, que lhe fez
chegar às mãos um
conjunto de limites e
possibilidades.
Infelizmente, às vezes o
passado dura mais do que
o devido, até por apego
dos indivíduos e
organizações
à
“acumulação de velhos
hábitos condicionados
por experiências
passadas e mantidos
unidos pelos clipes de
papel e pelos chicletes
da memória” (R. Johnson
e J. Ruhl). O “paradoxo
da identidade” resulta
do duplo efeito da ação
de um ego que tenta
estabilizar nossa
existência, ao oferecer
experiências seguras e
previsíveis, reprimindo
anseios e
possibilidades, o que
alimenta frustrações.
Sobretudo em períodos de
profunda transição,
talvez seja preciso
incendiar a barca da
fantasia para que
possamos sonhar novos
sonhos, como sugere a
deslumbrante e
melancólica canção “O
Pastor”, do grupo
Madredeus.
“Ai que ninguém volta
Ao que já deixou
Ninguém larga a grande
roda
Ninguém sabe onde é que
andou
Ai que ninguém lembra
Nem o que sonhou
E aquele menino canta
A cantiga do pastor
Ao largo ainda arde
A barca da fantasia
E o meu sonho acaba
tarde
Deixa a alma de vigia
Ao largo ainda arde
A barca da fantasia
E o meu sonho acaba
tarde
Acordar é que eu não
queria”
Compositores: Gabriel
Rebelo Gomes / Rodrigo
Leão / Pedro Ayres Fer
Magalhaes / Francisco
Manuel Pires Ribeiro /
Maria Teresa Salgueiro |