Agora chegou o momento
em que, kafkianamente, a
larva de 2013 rompe o
casulo costurado em
2016, e podemos dizer "I,
for one, welcome our new
insect overlords"
ao
ungeheures Ungeziefer.
Tem meio ano (já havia o
eleito, mas ainda não se
viam os Araújos) que as
musas me fizeram
psicografar este
fragmento de texto, uma
espécie de mensagem
profética sobre um chefe
de executivo cuja imagem
vai se tornando mais
bizarra, mais asquerosa
a cada momento.
Desejaria ele ao menos
que fosse uma barata de
Madagascar tal como
descrita por Fernanda
Young num
pequeno romance
tem uma década? Não sei.
Mesmo nisso parece que
há decepção: com
nojinho, rápido e
pequeno, que
Patrícia Lélis
não percebeu que é uma
mera tradução do
nasty, brutish and short
de Hobbes. Aliás,
guiados pela eminência
groselha, o vilósofo de
Carvalho, Jair e seus
filhos lembram o
episódio mitológico de
Laocoonte e seus filhos,
atacados por dois
distintos Marinhos
(sendo
um suplente e
outro a robertíssima
trindade
do filho,
do filho e
do filho),
pagando por seus pecados
contra Apolo. No caso
contemporâneo, a Vênus
Platinada parece ser a
divindade que os
fustiga. Alguém lembra
dela? Assim se chamava a
Globo quando regiam a
Ordem, o Progresso, os
militares e o AI-5.
Nasty, brutish and short...
subversão das
coincidências, este que
é talvez o trecho mais
conhecido do
Leviatã fica no
capítulo XIII, no
seguinte parágrafo:
"Portanto tudo aquilo
que é válido para um
tempo de guerra, em que
todo homem é inimigo de
todo homem, o mesmo é
válido também para o
tempo durante o qual os
homens vivem sem outra
segurança senão a que
lhes pode ser oferecida
por sua própria força e
sua própria invenção.
Numa tal situação não há
lugar para a indústria,
(...) não há
conhecimento da face da
Terra, nem cômputo do
tempo, nem artes, nem
letras; não há
sociedade; e o que é
pior do que tudo, um
constante temor e perigo
de morte violenta. E a
vida do homem é
solitária, pobre,
sórdida, embrutecida e
curta."
Da liberação de armas
para a própria defesa ao
regime pauloguediano de
capitalização para a
Previdência, vocês
identificam a passagem
acima acontecendo? De
Cásper da Costa dizendo
um "se
precisar fechar, fecha"
para as indústrias que
ameaçam abandonar o ABCD,
a um Ministério da
Educação onde uma versão
burocrática da trilogia
de O Ultraje (Autoreiji)
acontece nas páginas do
Diário Oficial, vocês
identificam a passagem
acima? E no ensino de
filosofia nas
universidades do
Nordeste? E no
fim do horário de verão?
E na "violenta emoção"?
Mediana entre as
palavras Marielle e
Muzema é bem possível
que esteja a palavra
Milícia. Mediana entre
as datas, a saída do
hospital, intestino
refeito, e o câncer que
se espalha fora dele: a
ideia de que o indivíduo
no mundo privado irá
prover a ordem ao invés
do Estado. A milícia é
isso, o estado final de
privatização das funções
públicas. Se o Estado
europeu, ocidental,
westfaliano, se fundou
na oferta de "proteção"
(e aqui não invento,
apenas reverencio um
artigo clássico
de Charles Tilly), a
generalização da milícia
no provimento da ordem e
na extração de rendas
sobre serviços é apenas
a reversão final de um
estado burocrático
submetido a toda a forma
de privatização
possível.
Vocês querem saber o que
é um mundo privatizado?
Uma favela carioca é um
mundo privatizado. Numa
favela carioca o espaço
público, o espaço
reservado a ruas e
calçadas, é da ordem de
5%. Em Nova Iorque é
30%. Essa é uma das
divertidas ilusões do
discurso do mercado
nesta terra, coisa que
um cara que apareceu
após Guedes cristalizar
suas certezas sobre o
mundo – Paul Romer,
Nobel em 2018 –
nota. E pode
parecer paradoxal eu
citar um cara que propõe
charter cities,
mas a
ideia dele é
indissociável dos
sucessos de
Cingapura e de
Shenzhen. E ambos os
casos não são o Mercado
por si só, a ficção
friedmaníaca dos
agregados antediluvianos
do bolsonarismo. Ambos
os casos são Estados
ativos, bastante ativos,
em nada ordoliberais,
para desespero dos
alemães, por exemplo,
pra quem começa a
cair a ficha que
o papinho de média
empresa e
competitividade é
caminho rápido para a
segundona.
Há uma
piada clássica,
que envolve um indivíduo
que se supõe sob um
problema de silente e
inodora flatulência, mas
que se revela ao final
como portador de alguma
temporária deficiência
nos sentidos de olfato e
audição. Pois hoje se
descobre que José
Padilha
sente um cheiro estranho
e, cinicamente, gargalho
um "what took you so
long, tolinho".
Porque, dessa grande
piada cósmica em que
estamos imersos, Padilha
é um dos maiores
responsáveis. Padilha e
seu Capitão Nascimento,
o trágico e covarde
psicopata do primeiro
filme transformado em
herói coxinha no
segundo. A normalização
de Jair começa ali, o
papel que ele encenou de
lá pra cá diferentemente
de sua trajetória
sindical, como
brilhantemente observado
por Cesar Maia numa
entrevista recente
(não que isso fosse
novidade,
pelo menos pra mim).
Zizek nos fala de um
complexo poético-militar
que cria as bases de
um massacre, que
antecede às ações da
política, à tortura, aos
snippers. Os
capitães-nascimento são
isso, construções
poéticas, profetas da
despolitização do mundo,
da ilusão da
possibilidade de uma
pureza técnica sobre a
desordem nacional.
A milícia, repito, é só
a etapa final da
privatização de tudo.
Mas o mal não para por
aí.