Refletindo sobre organização dos serviços jurídicos do BNDES
 

Deivisom Couto
Advogado do BNDES
 
Com a criação da diretoria jurídica em 2016, diversas alterações na organização dos serviços jurídicos do BNDES foram implementadas, notadamente a desvinculação dos departamentos jurídicos relativamente às Áreas demandantes dos seus serviços e a extinção de diversos departamentos jurídicos, sendo alguns de cunho estratégico em termos de legal risks management.

A justificativa apresentada para a primeira e mais impactante foi que, adotando-se um modelo semelhante às Procuradorias da administração direta, os advogados do BNDES teriam sua independência garantida.

Para a segunda, não foram apresentadas justificativas publicamente. Contudo, infere-se que ou se trata de uma questão de custos ou que, com a vinculação de todos os departamentos jurídicos à superintendência jurídica, restou inviável a administração de quase 30 departamentos por um único superintendente, levando isso, então, à necessidade de extinção de diversos departamentos no intuito de corrigir o efeito – talvez – imprevisto.

Utilizando este canal de comunicação interna dos empregados, o objetivo do presente texto é ponderar com o corpo técnico (i) que as justificativas apresentadas para as alterações realizadas parecem não proceder e que podem existir argumentos racionais a justificar sua revogação; e (ii) que as mudanças implementadas poderão gerar riscos não apenas aos serviços jurídicos mas ao próprio BNDES. Portanto, trata-se de questão não restrita aos advogados.

Quanto às justificativas apresentadas para as alterações organizacionais, principio com meu próprio testemunho, afirmando que como advogado do BNDES – há 20 anos – nunca senti qualquer resistência à minha independência no que tange ao exame das questões jurídicas e nunca ouvi tal reclamação por parte de algum colega.

Outrossim, o modelo organizacional da administração direta não serve de modelo para o BNDES seja pela natureza jurídica diversa de cada ente e dos seus serviços, seja pelo fato de a administração direta ainda não ser reconhecida como modelo de eficiência.

Relativamente à redução de custos é importante ter em mente: a uma, que o incremento no resultado de uma empresa não se colhe apenas com redução de custos, mas também com a agregação de valor aos serviços prestados; a duas, que custos há que são inevitáveis e que sua eliminação pode comprometer, no médio ou longo prazo, a própria continuidade da entidade.

Quanto à vinculação de todos os departamentos jurídicos a uma única superintendência, parece tanto impossível sua administração, em termos práticos, quanto ilógico que o superintendente sequer conheça nominalmente todos aqueles que exercem funções em sua confiança – notadamente gerentes e coordenadores.

Para além do questionamento às justificativas, argumentos há que apontam no sentido da modificação do status quo.

As mais renomadas escolas de negócios do mundo apontam para a necessidade de as decisões corporativas ocorrerem na zona de interseção entre os círculos econômico, jurídico e ético.

Segundo George J. Siedel, decisões corporativas que apenas consideram um dos círculos acima mencionados – notadamente o econômico – podem causar enormes prejuízos e até mesmo levar ao perecimento de uma entidade. Exemplo de decisão, no âmbito de um player global, que apenas considerou o círculo econômico e causou enorme dano econômico e reputacional foi o recente caso envolvendo a Volkswagen (The Three Pillar Model for Business Decisions: Strategy, Law and Ethics).  

Considerando a necessidade de levar em conta os aspectos econômicos, jurídicos e éticos nas decisões corporativas e que uma miríade de decisões são tomadas no âmbito das corporações e nos mais diversos níveis hierárquicos, a proposta das escolas mais avançadas, a partir de dados coletados em pesquisas ao redor do mundo sobre os principais riscos dos negócios, é que os executivos de maior nível hierárquico (decision makers) devem ser pessoas com bom conhecimento jurídico (law savvy), uma vez que no cotidiano é difícil, do ponto de vista prático, consultar a opinião de um advogado a cada decisão.

Para os estudiosos, um executivo com esse diferencial possui uma visão sobranceira (a view from de balcony) dos três círculos antes mencionados, permitindo, dessa forma, adotar o melhor approach em termos de criação de valor, gerenciamento de riscos jurídicos e melhores práticas.

Admitida como verdadeira a ideia acima apresentada, como então explicar que o BNDES seja referência de excelência no mercado em que atua se a grande maioria dos seus executivos de carreira, até pela forma de ingresso no Banco, não podem ser considerados law savvy? A resposta que me parece mais razoável é que, apesar disso, o BNDES sempre conseguiu atuar na zona de interseção acima mencionada (círculos econômico, jurídico e ético), gerenciando adequadamente os riscos dos seus negócios e desenvolvendo uma peculiar view from de balcony.

E como o BNDES conseguiu isso, foi justamente o que foi abalado pelas alterações realizadas na organização jurídica do Banco.

A organização dos serviços com departamentos jurídicos alocados no âmbito de cada Área do Banco permitiu que, no desempenho cotidiano de suas funções, os executivos sem formação jurídica desenvolvessem um adequado nível de gerenciamento dos riscos legais envolvidos. Isso porque em vez de advogados que se manifestavam ao final através de pareceres distanciados do mundo da vida – do mundo dos fatos – tais executivos contavam com advogados como parte de suas equipes, participando desde a concepção de um projeto, de um produto, ou de um fomento até o último ato, o que gerava uma relação proveitosa para o BNDES, onde o não-advogado era matriculado nas questões jurídicas e vice-versa, desde o início de um projeto, com notáveis ganhos de segurança jurídica e eficiência para o BNDES.

No modelo de Procuradorias, não me parece que serão geradas consultas a cada dúvida e o cenário provável é que ao final de cada trabalho deverá haver a manifestação jurídica sobre o todo, com duas possíveis consequências negativas para o Banco. Em havendo algum óbice jurídico haverá retrabalho gerando ineficiência ou – o que será pior – poderá, aí sim, surgir pressão para que algo seja aprovado com vistas a evitar o retrabalho e o desperdício do tempo já decorrido.

Para não deixar sem exemplos, vou utilizar os dois departamentos extintos pela atual gestão para citar como funcionava o gerenciamento de riscos legais relativos a dois importantes stakeholders do BNDES: clientes e BACEN (órgão regulador).

No caso da APP, seria fundamental que o jurídico da Área juntamente com os demais executivos e técnicos, por exemplo, avaliassem os riscos jurídicos para o BNDES de uma alteração nas Políticas Operacionais, que, por exemplo, criasse ou modificasse um produto. Conforme salienta Anderson Schreiber, além da erosão dos tradicionais filtros da responsabilidade civil (culpa e causalidade) vivemos a era dos "novos danos", o que impõe um cuidado redobrado em termos de gerenciamento dos riscos jurídicos (Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil). Basta ter em conta, atualmente, a chamada strict liability , no direito estadunidense (american tort law), relativamente aos deveres de garantia e informação (warranties e warnings) dos fornecedores e no Brasil a adoção da responsabilidade objetiva, a critério do julgador, pela positivação da teoria do risco atividade no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

No caso da AGR, encarregada por zelar pelo cumprimento, por parte do BNDES, das normas emitidas pelo BACEN, fica ainda mais evidente que apenas um jurídico interno com dedicação exclusiva à referida matéria regula-tória poderia fazer face às exigências cada vez mais específicas do órgão controlador. Não à toa o BNDES vinha investindo, através de participação em cursos e seminários nacionais e internacionais, na aquisição, pelo extinto departamento jurídico, de conhecimentos aprofundados desse ramo tão específico do direito. Doravante, cada vez que surgir uma dúvida sobre a interpretação de uma norma ou a existência de antinomia entre normas no âmbito regulatório, deverá a AGR realizar consulta ao departamento jurídico externo, que, então, começará a pesquisar sobre um tema no qual não é iniciado para proferir um posicionamento vinculante para todo o BNDES – em ambos os casos perdeu-se eficiência e segurança.

Nessas breves linhas, razões bastantes põem em dúvida as mudanças ocorridas – e em vias de ocorrer, bem assim expõem como tais mudanças podem afetar, não apenas os advogados do Banco, mas o próprio BNDES e seus stakeholders.

É importante destacar, por fim, que o presente texto nada tem de novidadeiro, simplesmente vem dar corpo a um sentimento geral dos empregados do BNDES.

 
 
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