Opinião

Edição nº1373 – quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Um Professor visita o Brasil

Paulo Moreira Franco

Economista do BNDES e botafoguense

"Se alguns políticos fossem treinadores não resistiam muito tempo nas equipas". (Jesus)

Na segunda das apresentações, um ex-presidente, ex-funcionário de carreira desta instituição abriu citando um artigo recentíssimo de David Graeber no The New York Review of Books. Um bom artigo: semana anterior eu tinha impresso quatro cópias e dado a três colegas (a minha ficara na primeira apresentação, no CBAE, que assisti na companhia de um ex-assessor externo, grande amigo). Pio falou (muito bem) a partir de umas folhas manuscritas em caneta azul, notas pessoais, suponho. A segunda apresentação foi repeteco da primeira. Mas naquele dia eu estava ali mais por conta do Lara do que do próprio Wray.

Pio, Lara, dois ex-presidentes, breves ex-presidentes. Lara, com sua estampa de aristocrata que posou pra Velasquez. Ao mesmo tempo em que mostra uma conversão algo recente ao entendimento de MMT, em que sinaliza contemporaneidade como ao sair falando de argumentos neo-fisherianos sobre inflação (nota para leigos: a taxa de juros é quem causa a inflação, e não o contrário), ao mesmo tempo não consegue largar a carga que carrega de seu passado de tucano-cruzadista. Por exemplo, sua fixação na sua "grande descoberta", a inflação inercial. Ou na sua crítica à burocracia pública, custosa, ineficiente, preocupada com seus salários e interesses. Ali, na silenciosa paz da Casa Firjan, isto era uma piada pronta, a ironia de uma charge clichê de esquerda sendo encenada. Nada tão grave quanto o relatado por Thiago, ex-presidente de nossa Associação, que testemunhou na manhã de terça no seminário organizado pela Fiocruz, outro egresso da PUC, José Márcio Camargo, com ao que parece uma histérica defesa do equilíbrio fiscal. Não sei se dessa vez ele estava fazendo merchandising de sua asset no PowerPoint, como fez aqui no Banco quando de seu ataque à TJLP.

Mas o que é MMT? Em um parágrafo: é a forma como o sistema monetário de um país com moeda soberana de fato funciona. Não é um conjunto de propostas, mas uma descrição. Como a relação entre pagamentos e recebimentos efetuados pelo ente soberano cria e define a moeda (em geral um binômio Tesouro-Banco Central) e interage por meio do sistema de reservas bancárias com os estoques e fluxos de moeda e de riqueza existentes. Versão progredida tanto da teoria geral da moeda de Keynes quanto dos entendimentos de moeda endógena e oriunda do crédito que vem de Knapp, Schumpeter etc. MMT permite um entendimento da moeda em suas várias encarnações. Mais detalhes em link no VÍNCULO On Line do YouTube, onde o Daniel (que estava no CBAE) explica muito melhor.

Aqui faço uma pequena digressão: creio que raras pessoas de fato entendem história como um fenômeno de cognição. Uma mesma palavra, uma mesma prática, uma mesma instituição, podem ter significados totalmente diversos ao longo do tempo – e mesmo em tempos próximos. Por exemplo: até a segunda edição do DSM-II, em 1973, homossexualismo era, do ponto de vista psiquiátrico, uma doença. Se até 1977 no Brasil era impossível um segundo casamento, hoje duas mulheres podem legalmente constituir uma relação. A palavra patologia, a palavra casamento, duas palavras que aparentemente querem dizer coisas tão claras, mudaram de natureza no horizonte de vida de muitos dos que estão aqui.

A mesma coisa se aplica à palavra moeda. E, neste sentido, faltou um pouco de autocrítica em Lara quando detonou com a Teoria quantitativa da moeda. Dentro dos limites regulatórios vigentes até os setenta, dentro dos fluxos de câmbio e comércio limitados em que se operava até então, ela até que era uma explicação persuasiva. Errada (pra começar supõe moeda exógena), mas persuasiva. Tão persuasiva que teve a popularidade que teve (passado, pois hoje ninguém mais liga para a Base, só para a curva de juros como instrumento de política). Moeda, contudo, tornou-se outra coisa a partir do advento de mercados como o do eurodólar, de instituições como o SWIFT, quando da constituição do Minotauro Global reciclando o superávit dos exportadores de petróleo. A partir daí a natureza do processo endógeno da moeda se torna cada vez mais explícita, e os processos de regulação que dão conta da explosão da financeirização a nível global visaram regular a estabilidade de um sistema de pagamentos que não é mais nacional. A "inércia" do Lara é algo que só existiu no âmbito de mecanismos que regulam contratos no tempo como os que havia no Brasil até o Plano Real (menos para quem tem concessões públicas de serviços, que continua protegido). Mas ao menos Lara abandonou a ideia de que moeda é uma coisa fixa, dada, limitada, exógena, atrás da qual os governos precisam correr desesperadamente.

Como formulado por Bruno Latour, "The word ‘law’ in the ‘laws of economics’ should be understood as in ‘civil laws’, that is as a highly revisable affair in the hands of a polity. Not as a law of a transcendent world in the hands of an invisible deity."

Retomando, do ponto de vista de MMT, dívida pública não é problema. Déficit público, se não houver disputa por bens e serviços com o setor privado, não é problema, mas solução. O Estado emissor é a única fonte de ativos financeiros sem risco de inadimplência. Você perguntará: mas e a desvalorização da moeda? Isso é uma questão de preço de ativos, que se ajusta no mercado. Isso impacta preços e expectativas, mas não por risco de inadimplência. O Brasil pode quebrar em dólares, mas nunca em reais (a menos que voluntariamente resolva fazê-lo).

O que se passou de 2008 para cá mostra isso claramente. Claro que há quem não entenda que juros negativos não são resultado de uma opção voluntária por perder dinheiro em aplicações, mas a forma mais conveniente de estacionar dinheiro com o mais baixo risco possível. Sabe o cofre do Tio Patinhas? Imagine o custo físico, os custos de segurança. Um bund ou um bond da Nestlé em franco suíço com taxas negativas é fisicamente mais razoável. Juros negativos são consequência de se tentar impedir que o castelo de cartas da pirâmide especulativa não desmonte, que a riqueza não seja destruída. Daí o baixo sucesso dessas políticas em termos de crescimento: elas não visam os fluxos de renda, mas os estoques de riqueza. Claro que o discurso é outro: imagina os eleitores vendo sua vida estagnada porque os bancos centrais estão preocupados com que nada aconteça aos bancos.

O ponto central é que, do ponto de vista de MMT, todo o processo de austeridade em que estamos inseridos desde que a questão externa deixou de ser um problema é um grande ato de estupidez. A política de juros do BACEN, bem como a mesa de 21 com contagem de cartas do swap cambial, é um ato de geração de riqueza para determinados grupos de nossa sociedade, grupos bastante favorecidos no qual nos incluímos como pessoas físicas.

Do ponto de vista de MMT, tanto a luta pelo FAT como toda a questão de manter uma posição contábil de caixa que tem como contraparte um passivo de longo prazo com o Tesouro, são uma profunda ilusão, luta por convenções que não resolvem de fato os problemas que temos pela frente. Problemas contemporâneos, concretos, como Christine Lagarde colocando a questão do clima como obrigação do Banco Central Europeu, por exemplo.

Não quero FATs, depósitos de gordura dos fluxos de tributação. Quero um mandato dual onde, além de um BACEN que exercite com um mínimo de competência uma política de metas de inflação (a propósito: tive o prazer de assistir à segunda palestra na companhia de nosso ex-colega André Nassif, de quem aprendi os horrores da forma como isto é feito cá no Bananão), o BNDES possa executar o papel de levar o país a uma meta de, digamos, 22% do PIB ao ano de investimento. Para isso precisaríamos atribuir ao BNDES dois instrumentos extintos na época dos cruzadistas: o BNH, o banco que financiava o investimento das famílias através de agentes financeiros (como a nossa FINAME fazia com equipamentos); e a Conta Movimento, um acesso direto ao Banco Central (que no passado permitia ao Banco do Brasil executar os gastos da União) quando da execução de nossos empréstimos. Nada disso está na agenda, mas está na hora de olharmos para fora, de buscarmos novo conhecimento técnico fora das fronteiras viciadas do discurso aqui no Brasil. Estudem, proponham, busquem conhecimento fora que não a reciclagem dos mesmos de sempre.

Isso deu certo para o Flamengo.

 

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