Opinião

Edição nº1373 – quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Pavlov tinha razão

Celso Evaristo Silva

Empregado do BNDES e 2º vice-presidente da AFBNDES.

Casa Branca surpreende seus seguidores no Planalto, Itamaraty e na CNI, mais uma vez, com a notícia da sobretaxação de nosso aço. O Brasil é o segundo maior fornecedor de ferro e aço aos EUA. Em 2018, o governo norte-americano já estabelecera tarifas especiais sobre o aço e o alumínio importados pelos EUA. Brasil e Argentina estavam na lista dos países afetados por essa decisão pouco alinhada à orientação liberal de Friedrich Hayek (1899-1992), Ludwig von Mises (1881-1973) e Milton Friedman (1912-2006).

O histórico da terrinha dos Chicago Boys não é nada inocente do ponto de vista da tradição laissez-faire. O suco de laranja, algodão, etanol e o aço brasileiro juntos com o trigo argentino e os carros japoneses conhecem bem a pressão exercida pelo Tio Sam quando seus interesses maiores estão em jogo. Mais do que intervir pontualmente na esfera econômica, o Estado norte-americano trabalha em parceria proativa com os grandes grupos econômicos de lá, lançando mão do seu poderio político, econômico, militar e cultural para a defesa dos interesses estratégicos de seus conglomerados econômicos e financeiros. Durante seu governo, Barak Obama salvou as três grandes montadoras de automóveis da falência na crise de 2008, lançando mão de bilhões de dólares do contribuinte, enquanto Trump, ano passado, promoveu a venda de bilhões de dólares em sistemas de defesa e armamentos para Arábia Saudita, Coreia do Sul, Japão e Taiwan. O complexo industrial militar nem precisou agradecer. Os campeões nacionais têm vez e voz no paraíso liberal, no melhor estilo do "Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". O mesmo não se pode dizer de alguns dos protetorados situados abaixo do Rio Grande, para os quais o receituário ideológico neoliberal ganhou a força do imperativo categórico kantiano. A demonização do Estado e a crença apologética nas forças de mercado conquistaram corações e mentes.

A expectativa de Bolsonaro de ter uma relação privilegiada com Donald Trump nunca passou de condicionamento pavloviano de subalternidade dos representantes do governo brasileiro e de parte da elite do país, que só não cabe chamarmos de complexo de vira-lata, em respeito à lealdade, inteligência e coragem desse tipo de cão sem raça definida.

Tal estranhamento só demonstra emblematicamente o alto grau de ingenuidade pueril proveniente de setores da economia brasileira onde a malícia, perspicácia, estratégia e visão de negócios deveriam predominar. Fazer o quê? O então candidato Jair Bolsonaro e seu grão-vizir Paulo Guedes foram aplaudidos de pé na Fiesp, na CNI e outras entidades patronais ao defenderem premissas ideológicas ultraliberais sobre o Estado mínimo, abertura comercial unilateral imediata e a troca de direitos trabalhistas por empregos precarizados; ideário esse, diga-se, não praticado em lugar nenhum desta Terra Plana.

A entrega da Embraer, da base de Alcântara, a decisão do Brasil de abrir uma cota de 750 mil toneladas de trigo sem tarifa de importação, que beneficiará sobretudo os Estados Unidos, tão mal recebida pelo governo da Argentina, principal exportador do cereal ao mercado brasileiro, foram algumas das muitas concessões efetuadas pelo Brasil (pelas regras do Mercosul, o trigo importado de países que não fazem parte do bloco tem de pagar uma tarifa de 10%, o que costuma manter o produto argentino mais competitivo que o de concorrentes como os próprios EUA e a Rússia).

Em troca tivemos a nomeação de um general para o cargo de subcomandante de interoperabilidade do Comando Sul, unidade militar dos Estados Unidos que coordena os interesses estratégicos do país na América do Sul, na América Central e no Caribe, e o apoio vago – e já retirado – de Trump para o Brasil vir a tornar-se num futuro não bem definido (quem sabe depois da Argentina e da Romênia?) membro pleno da OCDE. Em contrapartida desse status de liderança global emergente, o presidente Bolsonaro concordou que o Brasil renunciaria ao tratamento especial e diferenciado nas negociações da OMC, em linha com a posição dos Estados Unidos.

O protecionismo recorrente dos países centrais – EUA à frente – expõe mais uma vez ao ridículo os economistas brasileiros defensores da retirada de barreiras alfandegárias e da redução das alíquotas de importação, ao largo de qualquer processo negocial compensatório. O mais patético ainda é ver muitos de nossos empresários e suas entidades representativas de classe, defensores da abertura unilateral de nosso comércio externo e da diminuição do papel do Estado na economia, estranharem a afirmação do presidente Trump de que o Brasil desvaloriza sua moeda: "...o Brasil não é a China. Aqui, o câmbio é livre, não há manipulação de moeda" – afirmou Marco Polo Mello, presidente do Instituto Aço Brasil. Bingo para o doutor Marco: o Brasil não é mesmo a China. A China tem um projeto nacional autônomo com prioridade no atendimento das necessidades de seu povo, embora integrado na cadeia produtiva mundial.

 

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