A percepção é o processo
por meio do qual uma
pessoa seleciona,
organiza e interpreta as
informações recebidas
para criar uma imagem
significativa do mundo.
A consciência cognitiva
do sujeito concreto –
individual e/ou coletivo
– está perpassada por
fatores biológicos,
culturais,
histórico-sociais e de
natureza emocional; e é
nessa consciência
mesclada de elementos de
origem variada que
ocorre o fenômeno
perceptivo.
A impressão que temos do
mundo exterior e de tudo
o que nele acontece é
por nós internalizada
após complexo processo
de mediação composto
pelos fatores acima
citados. Cada um de nós
tem seus próprios
filtros, o que faz da
nossa leitura da
realidade algo único,
intransferível.
No entanto, por
pertencermos a
determinados grupos,
comunidade, classe
social, estamos
compelidos (tenhamos
consciência disso ou
não) a compartilhar
valores comuns com os
demais membros de tais
coletividades. Esses
valores transformam a
singularidade perceptiva
de cada um de nós em
algo cujo conteúdo
mantém o mínimo de
correspondência com a
percepção coletiva. Em
outras palavras: o todo
influencia suas partes
constitutivas, deixando
marcas, sem anular o que
nelas é específico: João
é um tecnocrata, embora
nem todo tecnocrata seja
o João.
O ato de conhecer a
realidade traz sempre
embutido o efeito da
percepção, ou seja: a
síntese intuitiva de
traços observados de
qualquer fenômeno a
partir dos filtros
idiossincráticos do
observador. A conclusão
inevitável é que a
utilização eficaz de
nosso arsenal de
conceitos e ideias na
lida diária depende, em
grande medida, de uma
boa percepção da
realidade que nos cerca.
Percepções ruins levam a
respostas inadequadas
aos desafios do mundo ao
nosso redor. No campo
profissional, a
tentativa de aplicar
conceitos técnicos a
realidades mal
compreendidas resulta
apenas em narcisismo
pedante, em historinhas
adornadas com aparência
de linguagem
intelectualmente
sofisticada. Na
avaliação resultante, os
traços percebidos são
deformados por
categorias impróprias e
a confusão pode chegar a
tal ponto que o trabalho
mental se torna esforço
perdido.
O mecanismo perceptivo
está sempre marcado pela
distorção perceptiva,
cuja tendência é
transformar a informação
captada em significados
pessoais e interpretá-la
de maneira que se adapte
ao nosso modelo mental.
Se tal distorção é
inevitável, como
minimizarmos seus
efeitos negativos?
Em outras palavras: para
conhecer e transformar a
realidade com algum grau
de sucesso, precisamos,
antes de mais nada,
aprimorar nossa
percepção. Mas de que
forma podermos fazê-lo?
Os livros de autoajuda
ajudam pouco na
empreitada: são
prescritivos e
reducionistas demais. A
jornada é longa e
difícil; requer esforço
de aprendizado formal,
prático e emocional.
Leitura, vivências,
autoanálise são
indispensáveis, mas
insuficientes se
desprovidas da reflexão
crítica necessária do
processo de análise do
objeto de nosso
interesse e sobre a
importância a ele dada
por nós. Se devemos
suspeitar de nossas
próprias certezas, que
dirá das ideias já
prontas e acabadas que
nos são inculcadas
ininterruptamente a cada
dia!?
O filósofo francês Paul
Ricoeur (1913-2005)
criou a expressão
"mestres da suspeita"
para designar os
pensadores Karl Marx
(1818-1883), Friedrich
Nietzsche (1844-1900) e
Sigmund Freud
(1856-1939). Segundo
Ricoeur, foram esses
três pensadores que
‘suspeitaram’ das
ilusões da consciência,
tanto no plano
individual quanto no
coletivo. Por
consequência, para
desvelar a verdade, é
preciso proceder à
interpretação crítica do
que julgamos conhecer a
fim de decifrar o
sentido oculto na
aparência das coisas,
das pessoas, dos
acontecimentos – em
suma: precisamos sempre
aprimorar nosso aparelho
mental perceptivo.
Por isso, todo
fundamentalismo, seja
ele religioso, político,
ideológico, pela
ausência do senso
crítico, é tão nefasto
ao discernimento do
mundo real. O
lugar-comum, o aceito
como trivial, é
passível, com
frequência, de nos
arrastar para o mundo da
fantasia, no pior
sentido deste termo. Nas
sociedades de massa a
engenharia social longe
de ser exceção é a
regra. É preciso ouvir a
exclamação do psicólogo
Wilhelm Reich
(1897-1957): "não,
as massas não foram só
enganadas, em
determinada medida, elas
efetivamente desejaram o
fascismo!".
A percepção pobre é a
que tem poucas ligações
com o ambiente externo a
si, e as poucas que
possui com o real são
rotineiras e não
criativas. A vida
reacionária é a que tem
mais ligações com o
passado do que com o
futuro; ela se liga a
uma realidade que não
existe ou deixou de
existir, ou que só
existe na sua cabeça:
suas reações se
processam em relação a
fantasias e ilusões; o
perigo provém de seus
próprios medos, seus
dogmas são projeções das
próprias inseguranças
íntimas.
O dramático do momento
histórico pelo qual
passamos é o do
empreendimento
negacionista de todo
conhecimento alcançado
pela humanidade, negação
da ciência, de todas as
conquistas da
civilização e da
cidadania:
"a Terra é plana";
"vacina mata"; "o
aquecimento global é um
mito"; "fumar não faz
mal"; "qualquer tipo de
política pública e
amparo social gera
dependência";
"homossexualismo é
doença"; "o ensino
doméstico é melhor do
que o ensino escolar";
empresas estatais são
intrinsecamente
ineficientes e não
éticas" etc. etc. etc...
O que a princípio pode
parecer motivo para riso
e/ou indiferença requer
de nós profunda
reflexão. Estará nosso
futuro inteiramente
hipotecado a
determinadas matrizes
ideológicas de grupos
perpetuadores de
imaturidades, os quais
promovem o
individualismo mais
narcísico possível como
resposta a demandas
coletivas, que pregam o
amor universal, mas
praticam a intolerância
com os diferentes, que
enxergam o meio ambiente
como obstáculo ao
desenvolvimento em vez
de requisito essencial
para obtê-lo?
Se nossas atitudes e
desempenho são pautados
por percepções mal
formadas em relação à
vida, o posicionamento
ante os diver-sos
aspectos da existência
estará alinhado com
formas imaturas de
reagir aos desafios de
toda ordem. Não há
receitinha de bolo. Não
há solução mágica. Não
podemos procrastinar.
Estamos todos convidados
a nos empenharmos na
luta contra a onda
obscurantista global,
que, no Brasil, assume
ares de "tragédia-bufa".
A maturidade mental e a
percepção lapidada são
duas faces da mesma
moeda. Trabalhar para o
aprimoramento de ambas é
o que o tempo presente
exige de nós. Isto é o
que pode ser ainda a
nossa salvação da
barbárie.