Os valores do BNDES
Competência, independência técnica e diversidade: afirmação histórica dos valores que constroem uma instituição do Estado brasileiro

José Eduardo Pessoa de Andrade

Engenheiro aposentado do BNDES, professor da Escola de Química da UFRJ e diretor de atividades técnicas do Clube de Engenharia

"Aqueles que não podem relembrar o passado, estão condenados a repeti-lo" George Santayana1

Inspirado nessa frase, inicio essas reflexões. Mesmo já aposentado do BNDES, minha vida deve muito a essa instituição e à competência profissional e à qualidade humana das pessoas que fizeram sua história e das que, ainda ativas, continuam no permanente compromisso com seu futuro.

Claro que nem a instituição e nem essas pessoas são perfeitas. A primeira, fruto de uma arquitetura organizacional desenhada por humanos, e as segundas, como seres humanos. Reconheço que nessa história foram cometidos vários erros e equívocos, tanto pela instituição quanto pelas pessoas, nas quais me incluo. Minha convicção, porém, com muita tranquilidade, é de que os acertos foram muitíssimos maiores do que os erros e equívocos.

Isso me dá, como à maioria de meus colegas, aposentados e ativos, orgulho do trabalho, da vida e da convivência no BNDES. Também, de forma direta ou indireta, penso que a maioria dos brasileiros, que receberem informações honestas e transparentes sobre o Banco, terá orgulho dessa instituição que foi capaz de se desempenhar bem em sua função de contribuir para o processo de desenvolvimento econômico e social de nosso país. Muito ainda há para ser conhecido sobre o passado dessa contribuição, que constitui nossa história. Muito ainda há a ser feito pelos mais jovens para criar a história da superação dos desafios do futuro.

Creio que a razão primordial para a prevalência dos acertos foi a criação e a consolidação de um ambiente de respeito, de motivação e de valorização da competência e independência técnica, reforçado pela diversidade de ideias, de experiências e de visões de mundo. Foi possível constituir um espaço de predominância e incentivo à competência técnica e ao mérito, no qual as pessoas pudessem se sentir seguras com a convivência da diversidade e do contraditório para liberarem seu potencial criativo.

Agora, talvez com insegurança, voltamos a viver novo processo de transição que aponta para um futuro ainda desconhecido. Vivenciamos um espetáculo recente da democracia que pressupõe uma eleição onde existirão vencedores e perdedores. A rigor, após um período de esfriamento dos ânimos, deveríamos diminuir a importância concedida a quem venceu ou a quem perdeu. O valor maior deve ser a manutenção da experiência democrática, com a possibilidade de aperfeiçoar suas falhas.

A maioria da população escolheu um novo presidente na esperança de renovação e correção de várias práticas políticas com as quais já demonstrara sua insatisfação. Passada a campanha eleitoral, será necessário valorizar a sabedoria da maioria, e também dar valor ao conteúdo de sabedoria da minoria. Os excessos de algumas intolerâncias que se manifestaram na campanha devem agora ser minimizados. Tanto a proposta vencedora como a perdedora precisarão valorizar a convivência em ambiente que respeita a liberdade de pensamento e o diálogo que caracterizam a democracia.

Porém, no BNDES, parece ter renascido um tema delicado e espinhoso que não deve ser varrido para debaixo dos carpetes. Esse tipo de tema merece abordagem sem arrogância e sem a chatice das lições de moral. Vou tentar.

Recebi informações de que iniciativas, tomadas por alguns colegas, de intolerância quanto a diferentes visões de mundo estariam sendo cultivadas em nossa convivência. Destaque-se que a revista Época, de 17/12/2018, em sua pág. 32, 2º parágrafo, em matéria referente ao vereador Carlos Bolsonaro, chegou a publicar: "Em seguida, chegou uma turma de funcionários do BNDES querendo comunicar secretamente os desmandos de uma diretoria do banco".

Talvez não tenhamos criado ainda um espaço satisfatório de reflexão que evite o desabrochar, em nosso ambiente, dos ovos de serpente. Alguns andaram pensando em elaborar listas de colegas com posições contrárias à vencedora no pleito eleitoral. Fiquei horrorizado. Nunca soube de tal iniciativa no interior do BNDES. A elaboração de lista de pessoas indesejadas sempre veio de fora para dentro e sempre foi rechaçada na instituição.

Aproveito para tentar aprender um pouco com a história do BNDES.

A história não é constituída apenas por momentos de festas e celebrações. Alguns momentos muito tensos foram importantes e tiveram que ser superados para assegurar a existência dessa instituição da forma como a conhecemos. Alguns desses momentos cruciais são relatados a seguir.

1. No início de nossa trajetória, segundo depoimento de Roberto Campos2, quando foi superintendente do então BNDE, e por ocasião do 1o concurso público:

"Eu promovi um concurso em 1956. Enfrentei dificuldades, pois quatro dos técnicos aprovados eram militantes de esquerda e não tinham o ‘certificado de ideologia’ do Conselho Nacional de Segurança. Eram o Ignácio Rangel, o Juvenal Osório, o João Lira e o Saturnino Braga. Mas eu resolvi nomeá-los. Como já disse, a nomeação daqueles quatro técnicos sofreu impugnações. Na fase ditatorial de Vargas, havia sido criado o ‘certificado de ideologia’, para evitar a infiltração comunista na burocracia. Graças à inércia burocrática, essa exigência nunca fora formalmente abolida. Foi por isso que recebi da Secretaria do Conselho de Segurança Nacional uma notificação sobre a ‘suspeição’ ideológica dos quatro. Eu tomei a posição de que nenhuma restrição dessa espécie havia constado do edital de convocação. Eles haviam sido aprovados de acordo com as condições explicitadas no edital das provas, adquirindo assim direito legítimo à nomeação."3

Roberto Campos sempre foi considerado um integrante da direita liberal cosmopolita, um intelectual que se destacou pela sua inteligência, conhecimento, erudição e pela capacidade de debater ideias com os pensadores de quem divergia, principalmente os do campo da esquerda. Então, no início de sua história, o BNDES lhe deve essa afirmação dos valores da competência, da diversidade e da independência técnica. Podemos imaginar que legado diferente teríamos recebido se nosso superintendente tivesse se curvado e aceito a ingerência externa descabida ou se aproveitasse de seu cargo para afastar profissionais com ideologia diferente da sua. Talvez o não conhecimento desse passado pudesse favorecer a prática da perseguição política ou ideológica no BNDES.

Dos quatro benedenses citados, apenas Saturnino Braga ainda é vivo e atua no Clube de Engenharia e como Diretor-Presidente do Centro Internacional Celso Furtado.

2. Durante o período militar, na época do AI-5, em 1968, foi solicitado o afastamento de outros dois empregados pelo então Serviço Nacional de Informações – SNI. A comunidade do BNDES e seus dirigentes se mobilizaram para defender os mesmos valores iniciados por Roberto Campos e conseguiram impedir a efetivação desse afastamento.

3. Em 1970, Marcos Vianna4 assumiu a Presidência do BNDES e conta outra história interessante:

"(...) o ano de 1972 foi, para mim, emblemático. Eu já estava à frente do banco e tinha boa reputação como administrador, mas não usufruía de proximidade alguma com o presidente Médici – ao contrário do que viria a ocorrer com Geisel.

Vivia-se o ápice do fechamento institucional e do patrulhamento político dentro da máquina governamental. Havia, em todos os órgãos públicos, representantes, declarados ou ocultos, do Serviço Nacional de Inteligência, popularmente conhecido como SNI.

O BNDES não era exceção.

(...)

O SNI promovia verdadeira caça às bruxas, buscando detectar – e retirar do serviço público – todos aqueles que eram vistos, nas palavras da época, como ‘ameaça à segurança nacional’.

(...)

Um belo dia, naquele mesmo ano, Alberto dos Santos Abade, chefe de gabinete de meu antecessor, mantido por mim no cargo, entregou-me um envelope com a assinatura do Serviço Nacional de Inteligência e a inscrição: ‘para o Sr. Presidente do BNDE. Só pode ser aberto pelo destinatário’. Peguei o envelope e, sem abri-lo, rasguei tudo em picadinhos e joguei no lixo. Abade, que tinha interlocutores no órgão, ficou estarrecido: ‘Está maluco, presidente?’

Não pretendia, com meu gesto, marcar nenhuma posição heroica contra os militares. Apenas sabia que, se quisesse um BNDE livre de influências contrárias a seus objetivos, viessem de onde viessem, era preciso cortar o mal pela raiz.

Expliquei a meu chefe de gabinete, homem honrado, que minha missão era servir ao País, não ao regime militar.

Jamais me pautaria pelos recados do SNI".5

Vemos aí o reforço do legado construído no BNDES para reafirmar os valores da competência, da diversidade e da independência técnica. Porém, a atitude assumida pelo presidente Marcos Vianna foi extremamente difícil. Considero que ele foi corajoso e foi garantido pela sua história de competência técnica e pelo alinhamento com a política e capacidade de promoção do desenvolvimento, da área econômica do governo federal, em que pese sua divergência com a forma de ação dos militares. Imagino que os empregados do BNDES também tinham confiança na sua entrega de resultados positivos em função da sua qualidade, dedicação e pelo ambiente favorável que predominava no corpo funcional e na direção da instituição.

Conversas informais com participantes do BNDES também podem ser lidas na publicação "Memórias do Desenvolvimento" do Centro Internacional Celso Furtado.6

4. Deve ser registrado que o acirramento da disputa entre os militares para a sucessão do presidente Geisel, durante 1977, enfraqueceu a capacidade de independência dos dirigentes do BNDES frente à denominada corrente militar da linha dura, comandada pelo ministro do Exército, Sylvio Frota. Ele trabalhava para assegurar sua indicação nesse processo sucessório7. Marcos Vianna, nessa ocasião, não mais conseguiu impedir o afastamento, por razões políticas, de alguns empregados do Sistema BNDES frente às pressões dessa linha dura.

5. Encerrada a ditadura militar, ocorreu outro momento que poderia ter estressado o respeito à diversidade e aos valores do BNDES. Em 27/11/1985 foi promulgada a Emenda Constitucional No 26, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte e concedeu anistia a todos os servidores públicos punidos por atos de exceção. No BNDES, vinculado à época à Secretaria de Planejamento da Presidência da República, com status de Ministério, foi criada uma Comissão Especial, regida pela Portaria SEPLAN/GM No 117, de 04/06/878, que deveria analisar os casos ocorridos na instituição.

Essa Comissão analisou seis pleitos, dos quais quatro (de um advogado e um economista da BNDESPAR e de um advogado e um engenheiro do BNDES) receberam parecer favorável e dois (de um economista que solicitara reintegração à BNDESPAR e de um economista que solicitara readmissão no BNDES), parecer pelo indeferimento. Entre os favoráveis consta o do autor do presente artigo. Sem risco de incorrer em conflito de interesses, posso testemunhar que essa Comissão foi criteriosa na aplicação do instrumento legal e na análise de cada caso dos empregados envolvidos. Nem ocorreu perseguição ideológica e nem proteção corporativa. No retorno à instituição, esses empregados foram tratados com todo o respeito pelos demais colegas e puderam retomar, com normalidade, o respectivo desenvolvimento de suas carreiras.

Meu depoimento pessoal reforça a importância da prática dos valores predominantes no BNDES. Em nosso ambiente interno, nunca convivi com situações em que prevalecesse o ódio ou atitudes extremadas no relacionamento de colegas com visões de mundo ou ideologias diferentes.

Meu sonho, com confiança no legado que recebemos no BNDES, é que trabalhemos para evitar a contaminação por eventuais exageros de algumas posições e saibamos valorizar e respeitar a diversidade e a qualidade, de quaisquer opiniões ou ideologia, como uma riqueza e um bem que precisamos cultivar para colher seus frutos.

Na história que conheço do BNDES nunca ocorreu iniciativa interna de "deduragem" de colegas, mesmo nos períodos mais duros do regime militar. Isso seria uma ameaça à qualidade do ambiente interno que sempre prevaleceu e um fator de enfraquecimento da instituição. Reações de fortalecimento da unidade em defesa dos empregados e dos melhores valores do Banco, como ocorreu recentemente por ocasião dos abusos da condução coercitiva de colegas no caso da JBS, constituem, a meu ver, as práticas que devemos reforçar. Não podemos coadunar com a corrupção, seja de quem for e venha de onde vier, como também não podemos aceitar o abuso de autoridade.

A prevalência das decisões acertadas será tanto maior quanto mais firmes formos em defender a prática da tolerância da diversidade e da boa convivência entre colegas. Isso é uma responsabilidade de todos os empregados, que devem aprofundar sua reflexão para fortalecer essa atitude. A sabedoria para aprofundar nossa capacidade de diálogo entre os diferentes e para valorizar os valores da competência e da independência técnica é nosso trunfo para destacar o papel do BNDES no desenvolvimento econômico e social. Nossa sociedade, que também deve ter canais para ser ouvida, passará a reconhecer e a respeitar ainda mais essa nossa instituição que, sem partidarismo, dá seu exemplo de aliar competência e democracia no país.

"O Brasil tem um enorme passado pela frente" – Millôr Fernandes.

______________

1 Tradução livre da frase do filósofo hispano americano, George Santayana, 1863-1952, "Those who cannot remember the past, are condemned to repeat it"que viveu, em sua maturidade, um dos períodos mais turbulentos e sangrentos da história da humanidade, o das duas Grandes Guerras Mundiais.

2 Roberto de Oliveira Campos, 1917-2001, foi Superintendente e Presidente do BNDES, Ministro do Planejamento, Deputado Federal, Senador e autor de vários livros.

3 Biderman, C., Cozac, L. F., Rego, J. M. apud Faro, L.C., Sinelli, M., "Ignácio Rangel: Elogio à Ousadia", (Insight, 2014), 82.

4 Marcos Pereira Vianna, 1934-2012, foi engenheiro da Cia Vale do Rio Doce, atual Vale, presidente do BNDES de 1970 a 1979 e depois ocupou várias outras funções públicas e privadas.

5 Bettencourt, J., Bettencourt, L. A., Faro, L. C., "Marcos Vianna - Memórias de uma revolução industrial", (Pensar e Insight, 2010), 68,71.

6 "Conversas Informais" – Roberto Saturnino Braga, Luciano Martins de Almeida, Sebastião José Martins Soares, Marcos Pereira Vianna, Alberto dos Santos Abade "Memórias do Desenvolvimento", (Ano 4 – número 4 – setembro 2010 - Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento), 253-324.

7 Gaspari,E.,"A Ditadura Encurralada", (Companhia das Letras, 2004), 461-481

8 Processo No00835/87 Consultoria Jurídica da SEPLAN/PR.

 

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Grade: F (parte 3), por Paulo Moreira Franco

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