Imagina-te na seguinte cena: tu num banco em movimento.
À tua esquerda, ou à tua frente, há um homem. Provavelmente não negro, ou ao menos que não se identifica como tal. A voz de Ricardo Boechat soa tendo ao fundo o In C dos carros em movimento. Ao volante, ele opina.
Imagine-te na cena acima ao ler o programa de governo de Jair Bolsonaro. Escrito na forma aparentemente desconexa de um ppt vertido em pdf, sem esforço maior de ter consistência quanto à formatação, seja de ideias, seja gráfica, o texto em nada é inconsistente com o discurso de quem ele representa. É feito numa escrita contemporânea, sem o formalismo estéril do "economimimicismo" tecnocrático-social que esses textos costumam ter. Facilmente recortável, reprocessável, zapeável. Desconfortável para ti, o tipo de pessoa que se encanta com a ininteligibilidade do discurso dos economistas, não para quem ele se dirige ou representa. Não te deixes iludir pelos momentos de cabotinismo daciológico, como as infrações ao 2º Mandamento e a referência ao Foro de São Paulo. Entende: a oposição ao marxismo do Foro não é o neoliberalismo ou qualquer dessas paneleirices descritas por barbudos despenteados (ou por mulheres mal depiladas), mas o Taxismo. A doutrina taxista se baseia numa compreensão de que o mundo é simples e pode ser resolvido de forma simples. Um dos pilares dessa compreensão é a oposição entre a pessoa que honestamente trabalha (por vezes este até é um assalariado) e o vagabundo (por vezes este até é um assalariado). Esta pessoa é uma pessoa direita e, em o sendo, não vive a clamar por direitos, que nem o faz o(a) vagabundo(a). Se há leninistas entre os marxistas do Foro, os taxistas são em sua maioria lenientistas, questionando a indústria das multas, a proliferação dos mecanismos automáticos e impessoais de aferição do cumprimento da lei (como esta classe de rapinantes da liberdade de ir e vir que são os pardais).
O taxista tem seu próprio negócio, usando um bem de capital que é seu, seja próprio, seja arrendado. A mais pequena das burguesias, portanto. O taxista é testemunha (e vítima) da violência do mundo urbano, de sua selvageria moral. Se aqui a violência é generalizada, não nos iludamos o que é essa profissão: nos EUA, por exemplo, a taxa de homicídio é entre 21 a 33 vezes maior que a média das demais profissões. Ordem e segurança não são uma mera opinião de quem vive sob um constante temor e perigo de morte violenta. Pobres e periferias também vivem esta realidade onde a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.
Como o taxista, há o dono de restaurante, onde, ensanduichado entre as metades de teu expediente, passas algumas meias-horas. Este tem empregados (os quais, por vezes, até incluem uma pessoa que honestamente trabalha). Este também sofre violência: busca escapar das garras vorazes do fisco, dos implacáveis Joaquins Levys que lhes querem arrancar o couro para vestir em glória a mulher de Cabral. Pois se na doutrina taxista há uma compreensão de que o Estado deveria fazer coisas legais – como tapar buracos, dar condições para que as crianças não fiquem nas ruas e até se tornem pessoas honestas trabalhadoras –, há uma certeza de que, tal como anda a coisa, o Estado gasta seu dinheiro com corrupção e sustentando vagabundos, o que no fundo é a mesma coisa. O Estado tem muitos lugares de onde tirar dinheiro; e dele, o homem trabalhador honesto, é de onde ele não deveria fazê-lo.
Como o taxista e o dono do restaurante, há o médico. Este também convive diariamente com a miséria humana. A ele visitam os condenados pelas doenças, as vítimas (e praticantes) de perversões e violências. Tu provavelmente não estudaste tanto quanto o médico. No entanto, este vasto e complexo estudo que tornou o médico capaz de gerir a decisão entre vida ou morte pouco lhe instruiu sobre os afazeres de condução do Estado. Todo médico é um Doutor: o que para os outros é um credenciamento máximo, ou tratamento honorífico dado por pessoas de baixa instrução/hierarquia, para o médico é a própria designação profissional.
Como o taxista, o policial também vive num cotidiano onde a morte por bala é uma hipótese não tão remota. Como o médico, o militar e o policial também manejam profissionalmente a probabilidade da existência humana, autoridades a quem se espera um mínimo de respeito e reverência por sua dedicação e/ou qualificação.
Todos estão dentro do que chamaríamos de classe média. Neste sentido, tomo aqui emprestado um trecho longo do Graeber:
"Middle classness" is not really an economic category at all; it was always more social and political. What being middle class means, first and foremost, is a feeling that the fundamental social institutions that surround one—whether police, schools, social service offices, or financial institutions—ultimately exist for your benefit. That the rules exist for people like your-self, and if you play by them correctly, you should be able to reasonably predict the results. This is what allows middle-class people to plot careers, even for their children, to feel they can project themselves forward in time, with the assumption that the rules will always remain the same, that there is a social ground under their feet. (…) An easy rule of thumb is: if you see a policeman on the street at night and feel more safe, rather than less safe, chances are you’re middle class."
Jair fala a essas pessoas. Jair as representa, seja como parlamentar, seja a persona que ele encena. Se tanto os detratores quanto os futuros eleitores do Mito o veem, para o bem ou para o mal, como portador de um potencial de violência transformadora, a realidade concreta é de um cara que de alguma forma abandonou sua carreira corporativa para, externamente, lutar pelos interesses e privilégios da corporação que ele representa. Topologicamente, Bolsonaro não é distinto de um Bittar que sacrificou sua carreira no âmbito de uma estatal de telecomunicações para lutar na defesa dos trabalhadores do setor e dos engenheiros. Tu e eu temos casos desses, gente que foi para a AF e para o sindicato, que sacrificou suas expectativas profissionais futuras para que nós, free-riders "meritocráticos", gozássemos de uma série de benefícios. Atenta a isso: por trás do Mito existe a realidade de um deputado do baixo clero – qual seja, de um deputado que não está fazendo articulações para progredir, para ter acesso ao centro do poder – que foi fiel às necessidades e demandas da base que por perto de três décadas o manteve na Câmara. Quando ele é flagrado fora do papel, ele é isso: um político, com seus interesses familiares classe-medianos, com seu entendimento classe-medíocre.
Bolsonaro é algo novo na política? Creio que não. Se em parte ele atende ao um oitavo da população que acha que a solução dos problemas de ordem da sociedade é só tiro, porrada e bomba (como os mais de 14% dos votos válidos que o General Newton Cruz teve, em 1994, concorrendo para governador do RJ pela coligação Segurança, Educação e Dignidade), por outro lado ele encarna a ideologia de uma classe média ressentida com a contradição entre as promessas e os resultados do mundo. O filho do dono do restaurante onde à uma da tarde comes assada tua carne de Segunda estuda numa faculdade de terceira na esperança de ao menos se manter no quartil superior de distribuição de renda da urbe. Sobre eles paira o fantasma de mobilidade social com viés de baixa, pesa o mundo globalizado, neoliberal, que privilegia os front row kids – aqueles que como tu e eu foram agraciados pela sorte de terem "virtudes" sociais, familiares e genéticas que lhes permitem melhores notas, frequentar melhores escolas, acessar por concurso ou relacionamento melhores salários. E isso não envolve necessária e/ou exclusivamente trabalho e honestidade, mas sortes, diferentes tipos de sortes.
Isto não ocorre só aqui. Não é o autoritarismo ou a fanfarronice machista que une Bolsonaro e Trump. É em parte essa base social de derrotáveis e derrotados, é um conjunto de pessoas que está sendo esmagado economicamente e rebaixado socialmente pela globalização, pelo discurso de um mundo meritocrático em que não cabem todos, no qual eles não têm chance realista de se encaixar. Muito fácil para mim, para ti, para nossos colegas de faculdade e de desempenho escolar. Mas isto não é um fenômeno natural, ou algum ótimo modelar despossuído de interesses: é uma escolha política, é um processo de luta de classes que ocorre não verbalizado como tal porque, afinal de contas, opressões devem ser invisíveis e luta de classes é terminologia de barbudos desgrenhados simpatizantes da URSAL (sendo que a maioria destes ainda está presa a textos sagrados de perto d’um século ou mais – e não atentos ao presente e ao porvir, como alertava o camarada Karl).
Os doutores e os militares, por exemplo. Se estes no passado eram reverenciados, se eram parte da elite social e política de um mundo simples, pouco urbanizado, hoje tornaram-se pessoas comuns. O militar, que antes era uma das carreiras de Estado por excelência, hoje é alguém esquecido. Seus privilégios, os poucos que ainda resistem, insignificantes perto dos que o mundo do Direito dispõe, sejam os benefícios publicamente questionados de moradia, sejam os invisíveis honorários de sucumbência no braço Executivo. Você verá filhos de pessoas da elite econômica e social fazendo carreira pública jurídica ou diplomática; não creio que exista tal pessoa hoje na carreira militar. O médico encontra-se proletarizado pelos planos de saúde, pela realidade de um sistema de saúde no qual ele não é mais a intervenção divina salvadora, mas alguém meramente cumprindo o seu trabalho, sendo tratado como um prestador de serviços. Assim como o médico, o taxista encontra-se criativamente destruído pela introdução desregulada dos aplicativos.
Antes de Bolsonaro, na parte mais moderna do país de então, houve um político operando nessa esfera social. Ele nunca foi propriamente um candidato do establishment – que até o tolerava quando se tratava de derrotar a esquerda. Paulo Maluf foi até o final da década passada uma presença constante na política paulista. Entre 1994 e 2010, os mandatos de Jair foram obtidos nas mesmas legendas a que pertencia Maluf. Qualquer um que pegou táxis em São Paulo desde o início do 80 sabe que esta é uma base social solidamente malufista. Maluf foi uma criatura política de um São Paulo sob o peso da falência das expectativas sociais do Milagre, das crises dos oitenta e da abertura dos noventa, da hegemonia da finança esmagando os outros setores da economia. Jair é o grito d’outro coletivo de excluídos que não aqueles que chamamos de excluídos, pois nem todos os excluídos são miseráveis ou pessoas cujo desejo opera fora da moralidade convencional.
Aliás, falando nisso: tu sabias que Paris bem vale uma missa. Pois sabes que Brasília bem vale um banho? Bolsonaro se batizou no Rio Jordão, o que lhe permite uma conexão adicional com a mais recente encarnação do homem trabalhador honesto, o batalhador evangélico descrito pelo Jessé de Souza.
Sem que se desenvolva alguma empatia com as aflições dessas diferentes gentes, e, de alguma forma, enderecemos suas demandas na medida do que for possível em uma sociedade mais democrática e menos desigual, o Mito continuará a existir – o que não contribui para se produzir uma sociedade mais democrática e menos desigual. E esta crítica faço não só para os que veem o Mito como mal menor perto do risco de retorno da esquerda – mas nutrindo desprezo sobre Jair e sua base desqualificada – como aos que, como eu, cantam "Rock ‘n Roll is here to stay / Come inside where it’s okay / And I’ll shake you".
(Concebido e parcialmente escrito antes da facada)