Opinião

Edição nº1550 – sexta-feira, 7 de julho de 2023

O apocalipse foi só um começo

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“O maior truque já realizado pelo diabo foi

convencer o mundo de que ele não existe.”

(Baudelaire)

“Achei que você fosse escrever sobre a inelegibilidade do bolsonaro (...)”. Assim uma das minhas amigas leitoras começou uma conversa semana passada. Sexta foi um dia de alegria e júbilo. Um dia de catarse. Ou talvez um dia para nos olharmos no espelho e zoarmos de nós mesmos: “rindo de que, otário?”

Totalmente positiva foi a percepção de que aqui a esquerda é capaz de fazer memes de ótima qualidade. Essa capacidade foi perdida nos EUA. Ri, repassei várias, talvez a mais genial tenha sido a garrafa de Heineken com a estrela vermelha e o “ine” de inelegível.

Que mais positivo? Quem sabe com isso suma parte da encheção de saco da defesa de censura na internet para se evitar o fantasma do retorno do bolsonarismo. Talvez agora, missão cumprida, nosso herói-Supremo possa cavalgar em direção ao horizonte da cidade do “traço do arquiteto, gosto tanto dela assim”, remake de personagem estrelado por Yul Brynner, Estado de Exceção findo. Bolsonaro inelegível, a justificativa cai por terra.

Mas como “torcedor” da esquerda, esta inelegibilidade não me alegra. A presença divisiva de Bolsonaro agia sobre a centro e direita de uma forma contrária à do presidente Lula sobre a esquerda. Lula unifica, Lula gera um consenso em torno dele. Tanto que os mesmos onze magníficos tiveram que torná-lo inelegível em 18. Já Bolsonaro é grande o bastante para ter um piso que certamente não ficará abaixo de uns 20%. E isso tira oxigênio para que uma candidatura alternativa de centro ou direita possa se consolidar. Sem o controle de uma abusiva e descontrolada caneta presidencial, acho que a ameaça de Bolsonaro deixou de ser relevante. Mas ele impede a direita. Quer dizer, impedia.

O inimigo agora é outro.

Ou o inimigo é o mesmo, e, como espectadores num espetáculo de magia, estivemos olhando para a mão errada?

Vamos exumar o que aconteceu, entender a tremenda, inesperável conquista que foi obtida enquanto celebrávamos a vitória de Lula?

Por quarenta anos, o segundo maior partido do Ocidente (o MDB) – principalmente na forma de sua dissidência de elites parlamentaristas (o PSDB) – governou o maior estado do país. Às pessoas que falam em democracia como rotação de poder e reclam(av)am dos 13 anos do PT, lembro que em 1982 Franco Montoro foi eleito governador de São Paulo pelo PMDB, Montoro que viria a ser o primeiro presidente do PSDB. Seu vice Quércia foi eleito seu sucessor, e este elegeu seu secretário de segurança Fleury, tendo este por vice um Nunes Ferreira, que viria a ser senador pelo PSDB... Quatro décadas! Todas as dez eleições para governador no maior estado do país. Hai capito?

Isso acabou em 2022 (culminando a hecatombe de 2018, que descrevi na época aqui no VÍNCULO). Um personagem de carreira “técnica”, que como tal foi escolhido para ocupar o Ministério da Infraestrutura durante o governo Bolsonaro, foi eleito governador. Seu partido, o Republicanos. Aqui cabe uma observação que pode parecer surreal: quando Lula foi eleito pela primeira vez, seu vice, José Alencar, era filiado ao PL (de Bolsonaro na última eleição). Quando foi eleito pela segunda vez, Alencar era filiado a outro partido: o PMR, que hoje se chama Republicanos.

Mas se vocês forem olhar o “lattes” do sujeito, vocês verão que o brilhante (e aqui não vai ironia) Tarcísio pertence ao principal partido do governo Jair: o Partido Militar. Olhem o verbete biográfico de Tarcísio na Wikipedia. E aqui faço um pequeno desvio para o que alguns chamarão de teoria de conspiração.

Dando crédito a quem falou disso ao longo dos anos, Romulus Maia, Piero Leirner e Marcelo Pimentel, formularam uma hipótese de que a candidatura de Bolsonaro foi algo que começou no meio militar no Haiti, ainda no governo Lula. A transformação daquele tosco colega de turma que virou o deputado federal das forças armadas, policiais e bombeiros após a Constituição de 88 no Mito® é algo que é posto como acontecendo do nada, uma alucinação talvez causada pelo consumo excessivo de Capitão Nascimento pelas massas. Romulus, Piero e Pimentel, no entanto, enxergam que esse jabuti não foi posto lá por uma maré de azar – nem por dados viciados. Houve uma construção – e uma construção que passou, a partir de certo momento, na queima de Bolsonaro de forma a torná-lo o Cristo a assumir todos os pecados cometidos em sua gestão. Meio que entendi isso em algum momento, de forma inocente. Nunca imaginei que coisas como o Orçamento Secreto aconteceriam. Inocência: o tipo de debacle moral que foi o governo Temer só poderia ser sucedido por algo mais grave, como Collor sucedendo a Sarney.

Nesse sentido, toda a fanfarra dos “patriotas” de amarelo, das pessoas acampadas sob as bençãos do Exército em frente aos quartéis (põe o MST ali em peso para ver quantas HORAS eles ficam lá acampados), tudo isso acabou sendo uma grande distração nacional para não se ter tempo de discutir que, muito além de um mandato de deputado para o “doutor” Pazuelo, de uma cadeira no Senado para o “pedreiro” Mourão, o brilhante engenheiro que, depois de passar pelo Haiti, saiu do Exército para ocupar uma série de postos públicos, inclusive no governo Dilma, agora comandava a segunda maior caneta do país.

Lembra que mês passado eu falei de presidencialismo de coalizão? Pois bem: Tarcísio controlava uma das três canetas históricas, a herdeira do Ministério da Viação. Tarcísio, no curto par de meses em que informalmente estive dando um help na comunicação do Banco, já era entendido como o ministro de Bolsonaro mais bem posicionado nas redes sociais. Isso não é obra do acaso, não era por lacração, mas certamente resultado de um trabalho profissional de comunicação feito pelas mesmas estruturas que fizeram a campanha de Jair.

Só que ninguém vai atrás disso, como não foi de fato nas estruturas que fizeram Jair presidente. Ir atrás disso significa ter que reconhecer como um aparato de estado com dezenas de milhares de funcionários é aparelhado por elementos de sua hierarquia. Que estes construíram estruturas e relações com empresários (e sabe-se lá mais quem) à margem do que seria aceitável num regime democrático. Isso é corrupção no sentido mais puro da palavra, corrupção mais grave do que qualquer tapioca de quarta geração a abastecer as contas de pessoas próximas ao presidente Lira.

Ninguém vai atrás disso. Isso é briga séria. Portanto, teoria da conspiração, lugar onde brotam os fatos inconvenientes, sendo discutidos por pessoas perturbadas o suficiente para terem a coragem de, em meio a uma demência grandiloquente ou outra, trazer luz a essas coisas gritantes às quais ninguém quer realmente encarar.

Jair, sua caricata prole, tudo isso caminha para o passado. Quem vem são pessoas qualificadas. Por exemplo, além dos que já citei: o coronel Cid, tutor de Bolsonaro, tem tudo para ser o próximo mártir a construir uma carreira parlamentar de antipolítica em cima da traição ao mundo militar.

Entre outras tantas coisas, Dilma não soube entender um dos golpes que se gestava debaixo dela. Que Lula permita a mesma coisa não será mais a surpresa de algo inédito, mas negligência em enfrentar o que no fundo é o que o Capitão Nascimento chamou de O Sistema.

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Um adeus às armas (do baú de guardados, 2008)*, por Luiz Alfredo Raposo

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