Movimento

Edição nº1550 – sexta-feira, 7 de julho de 2023

Orgulho de ser e pertencer visibilidade LGBTQIA+ no BNDES. Um evento histórico!

 

fotos: wsantos

 
 

 
 

Renata Del Vecchio, Nabil Moura Kadri e Samuel Gomes

 

Realizado em 29 de junho no Teatro Arino Ramos Ferreira, com transmissão on-line pelo MS Teams (vídeo está disponível na intranet do Banco), o evento “Orgulho de ser e pertencer: visibilidade LGBTQIA+ no BNDES” trouxe ao Banco Samuel Gomes, especialista em Cultura e Diversidade na agência Play9, top voice LGBTQIA+ do LinkedIn, que apresentou palestra sobre “Diversidade no Ambiente Organizacional”, e a secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Symmy Larrat, primeira travesti a ocupar um cargo de secretária no governo federal, que falou sobre “Diversidade e Pluralidade na Defesa dos Direitos Humanos”.

Interseccionalidade – Samuel Gomes é autor do livro  “Guardei no Armário – Trajetórias, vivências e a luta por respeito à diversidade racial, social, sexual e de gênero” e tem um canal no YouTube com o mesmo nome (“Guardei no Armário”), que, segundo ele, é classificado pelo Google como o maior acervo de histórias de pessoas LGBTQIAPN+ da América Latina. No BNDES, Samuel falou sobre o processo enfrentado por pessoas pretas e LGBTQIAPN+ para ingressar e seguir adiante no mercado de trabalho, tendo como base o conceito de interseccionalidade, e, em paralelo, trouxe informações sobre sua trajetória de vida.

Falando sobre racismo estrutural, conceito muito trabalhado pelo ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, Samuel chamou a atenção para o racismo que se estrutura na sociedade através da política, do direito e da economia, campos que operam para o domínio da “branquitude” e produzem subtipos de racismo: institucional, ambiental, velado, recreativo e linguístico, que, em consequência, dão origem a outros fenômenos como a marginalização da população negra, a ausência de representatividade, o desemprego, o não acesso à educação e à saúde, o encarceramento em massa e a intolerância religiosa. “É necessário eu passar por esses pontos para vocês compreenderem como eu cheguei até aqui”, disse.

Samuel Gomes cresceu na periferia de São Paulo em uma família humilde, religiosa e conservadora. Estudou em escola particular, com bolsa, e em escola pública – nas duas sentiu o peso da discriminação e da violência do bullying. Aos seis anos de idade, como contou, tem a lembrança de começar a questionar a própria sexualidade: “Dentro do entendimento muito inocente de uma criança, eu olhava para os meus amigos com muito afeto. Mas eu não podia expressar ou mesmo entender o que estava se passando comigo. É por isso que eu trago pra vocês um dado sobre a vivência de crianças e adolescentes pretos no colégio. Imagina você ter que crescer entendendo que vários atravessadores seus te fazem ser diferentes dos seus colegas e que seus professores não estão preparados para lidar com essa situação”.  

Em seguida, Samuel trouxe dados do racismo na educação: “A taxa de analfabetismo no Brasil é de 8,9% para as pessoas pretas ou pardas, enquanto para pessoas brancas é de 3,6% (IBGE 2019). 42% de docentes da educação básica são brancos, contra 4,1% de pretos e 25,2% de pardos (Inep 2017)”.

E dados da vivência LGBTQIAPN+ na escola: “73% dos alunos LGBTQIAPN+ já foram agredidos verbalmente; 36% já foram agredidos fisicamente; 60% se sentem inseguros no próprio ambiente escolar; a fobia a essa comunidade é a terceira causa de bullying. As práticas mais comuns são xingar, ameaçar, amedrontar intimidar, humilhar, hostilizar, ofender, excluir, difamar, assediar, abusar, gritar, bater, chutar, empurrar, perseguir, violentar, apelidar, furtar ou danificar objetos particulares de pessoas LGBTQIAPN+ ou entendidas como tal. (ABGLT 2016)”.

Samuel disse que quando você não tem espaço de acolhimento dentro do colégio e da sua própria casa, há terreno fértil para que as violências só aumentem (a cada 16 horas ocorre uma morte por LGBTfobia no Brasil e muitas vezes essa violência acontece dentro de casa). “A falta de inclusão e acolhimento já nesses primeiros anos de vida se reflete no acesso à educação e, como um efeito dominó, limita as chances de inserção no mercado de trabalho”, destacou.

“Eu demorei 23 anos para poder me entender como uma pessoa LGBT e poder me aceitar. Hoje tenho 35. Com 23 anos, eu dei meu primeiro beijo. E crescer sendo LGBT na periferia me fez ter muitos medos, principalmente porque na televisão eu via referenciais em que eu não me enxergava”. Samuel lembrou de um programa de humor, na TV, em que um pai se questionava sobre onde tinha errado na criação do filho. “E assistindo a esse programa ao lado dos meus pais, me dava muito medo porque na época eu ainda não era assumido. E ninguém errou. Não existe erro na criação de um filho ou de uma filha LGBTQIA+. Existe erro na sua conduta quando um filho ou uma filha tem a intenção de falar quem é e não tem acolhimento. Onde é esse lugar de acolhimento?”, questionou. “Eu não queria perder o amor da minha família, eu não queria não ter um futuro. E é por isso que é tão importante o dia 28 de junho (Dia Internacional do Orgulho GLBTQIA+), que é tão importante falar sobre diversidade e sobre a realidade das pessoas LGBTQIA+. Para que lá no futuro elas possam estar num ambiente profissional, exercendo a sua excelência, elas precisam de uma base segura, uma base de afeto”.

Samuel apresentou mais dados sobre a violência contra a comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil: “51% das pessoas LGBTs relataram ter sofrido algum tipo de violência motivada pela orientação sexual de gênero. Destas, 94% sofreram violência verbal. E em 13% das ocorrências, as pessoas também sofreram violência física (ABGLT). Relatório do Observatório de Mortes e Violência contra LGBTQIA+ mostra que, em 2021, 316 mortes foram registradas no país, ante 237 em 2020” (Rádio Brasil Atual)”.

“No mercado de trabalho, que é o meu objeto de estudo e onde eu atuo há mais de 10 anos numa frente de diversidade, 40% das empresas não contratam abertamente pessoas LGBTs, não contratam pessoas trans, não contratam pessoas de recorte de diversidade, em cargos de entrada ou de liderança, bem como não dão ferramentas para que essas pessoas consigam avançar”, informou. Segundo dados apresentados durante a palestra, 61% das pessoas LGBTQIA+ escondem sua sexualidade no trabalho; 41% já sofreram discriminação por conta de sua sexualidade ou identidade de gênero. Para as mulheres trans e travestis, o peso do machismo e da misoginia, ainda tão forte em nossa sociedade, oprime as suas chances de futuro (Grupo Santo Caos)”.

“A gente está falando sobre um ciclo de exclusão que começa na família, passa pela educação e chega ao mercado de trabalho. Como foi pra mim, então, enquanto negro e gay entrar no mercado de trabalho? Como foi conseguir bases para que eu pudesse estar hoje liderando uma área de cultura e diversidade? Todas essas violências deixam marcas; a gente carrega algumas cicatrizes por longos anos na nossa vida, como síndrome do impostor, autossabotagem, medo de rejeição, medo de se mostrar e mostrar toda a sua potência”, exemplificou.

Samuel seguiu sua palestra apresentando características do mercado de trabalho que criam obstáculos para a diversidade e a inclusão, como o “viés de afinidade” (“nossa predisposição a avaliar melhor e se relacionar com pessoas que tenham os mesmos gostos, histórias e traços parecidos com os nossos”). “Por isso que é mais difícil cargos de direção com mais pessoas pretas, com mais LGBTs, com mais PCDs”, ressaltou.

“Que a gente possa aproveitar esses momentos de letramento e aprendizado para  entender qual é o nosso papel nessa mudança. Vocês precisam se questionar internamente e entender o papel de vocês dentro da empresa, dentro dessa luta. E não é só sobre o BNDES, é sobre todos vocês fazerem essa mudança interna e externamente”, concluiu.

Orgulho, ser e pertencer – Symmy Larrat é paraense radicada em São Paulo, formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará, em Belém, cidade onde começou sua militância política. Ela foi a primeira travesti coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, no governo Dilma Rousseff, e também coordenou o programa Transcidadania, da prefeitura de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad.

Ocupou a presidência da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), por dois mandatos. Foi a primeira travesti a ocupar a liderança de uma das principais entidades representativas do movimento LGBTQIA+ no Brasil, fundada em 1995.

De improviso, a fala bem humorada e cheia de significados de Symmy merece ser assistida na íntegra, no vídeo disponível na intranet do Banco. “Eu queria agradecer o convite. Eu sou nortista, sou de Belém do Pará, travesti, então, quando ouvia falar do BNDES, parecia uma coisa que só tinha em Genebra. Era uma coisa inalcançável. Então hoje estar aqui, representando o governo, é emocionante. Obrigada por vocês me permitirem estar em lugares que eu nunca imaginei estar”, disse.

Com a agenda intensa por conta do Mês do Orgulho LGBTQIA+, Symmy pediu desculpas pela rouquidão. “Não estou querendo fazer a sexy. Essa voz é resultado de uma agenda extensa que nós começamos no mês do Orgulho desde que saí de Brasília para São Paulo. Como sou alérgica, isso vem se aprofundando.  Quanto mais orgulho, menos voz. Quanto mais orgulho, mais cansaço”. “É importante falar em alto e bom som sobre orgulho, o que nos foi impedido nos últimos anos. Então chegar aqui e ver esse auditório gigante cheio é muito importante. Parabéns a todos nós”.

Symmy baseou sua fala no título do evento: Orgulho de ser e pertencer. “Primeiro o ser. A gente luta pelo ser. Para a gente chegar em quem sou eu, é uma jornada percorrida com muitas histórias de dores. Quem é esse ser humano? Quem você pode ser? Você tem que ser uma pessoa branca, você tem que ser homem, tem que ser heterossexual, performar uma masculinidade para chegar nesse lugar. E eu tenho dito por onde tenho passado: a cisgeneridade, a heterossexualidade, a monogamia, o casamento não existem. Mãe não existe, porque quando eu falo de mãe, a imagem de mãe é daquela mulher que tem que viver para aquele filho ou filha. Ela não pode sonhar com o trabalho, crescer na carreira, ela só pode pensar no filho ou na filha.  Para ser monogâmico, eu não posso pensar que uma outra pessoa é bonita, a não ser aquela com quem eu casei. Então monogamia não existe, enquanto conceito, enquanto arquétipo. Ser hétero não existe, porque se você abraçar e der um beijo no rosto de outro homem, por exemplo, você não é mais hétero. Esse conceito de ser é adoecedor para todos nós. Porque quando você não alcança, o erro está em você. O prazer é culposo na nossa sociedade extremamente moralista. E eu não estou falando só de sexo, estou falando de chocolate também, porque o conceito de corpo também é adoecedor. Nós somos um combo de tortura. E como é que a gente vai construir outras fronteiras do que é o ser?”.

A secretária também falou no conceito de pertencimento. “Pertencer perpassa por cada um olhar para si, se entender, independe do formato do seu corpo. Então eu posso pertencer ao ser mulher mesmo tendo nascido com pênis. Mas na sociedade eu só posso ser essas duas coisas: homem ou mulher. Porque o que estiver fora disso é irracional, é inaceitável. Então quando eu chego num lugar e me apresento como travesti, eu estou dizendo que eu me reconheci nesse lugar, eu pertenço a este lugar. Eu costumo falar que a gente não faz transição de gênero, a gente faz pertencimento de gênero, porque eu sou o que eu sinto ser”.

Um outro desafio, segundo Symmy, é fazer com que pessoas que vieram de outras jornadas também possam se pertencer, “mesmo na gestão pública, num governo progressista que ganhou para vencer o ódio”. “A estrutura do Estado é feita para aquele ser patriarcal, o qual não nos cabe, mas a gente devagarzinho vai hackeando o negócio”. E o orgulho? A secretária diz que ama o orgulho. “Quando a gente fala disso, a gente está falando de uma estratégia de contranarrativa a essa narrativa do ser que nos persegue e nos tortura. Eu cresci ouvindo da minha mãe que se eu fosse daquele jeito eu não iria chegar a lugar nenhum, eu não iria ter emprego. E em determinado momento eu guardei meu diploma na gaveta e fui me prostituir, porque as pessoas entendiam que aquele não era o meu lugar. E uma amiga me perguntou o que eu estava fazendo ali. E eu disse que a mesma coisa que ela: sobrevivendo. E ela me falou: Mas se tu está aqui, nenhuma de nós vai sair daqui. E naquele dia eu comecei a construir a minha história de sair daquele lugar, para ter orgulho de toda essa trajetória. O orgulho é muito potente”.

Falando do BNDES, Symmy sustentou que a gente não pode pensar desenvolvimento sem justiça social: “E isso não é só para os outros, é para a gente também. É para mudar a nossa lógica de pensar. A gente precisa desmonetizar o ódio e monetizar o amor e a vida sob outros paradigmas. Monetizar as famílias, os gêneros, tudo é plural. O preconceito empobrece, é oneroso para o Estado, a pobreza é onerosa. A gente gasta muito com viatura, arma, hospital. Se todo mundo tivesse acesso, a gente iria diminuir muito o custo de muita coisa. A gente iria parar de gastar para corrigir o problema, se a gente tivesse desenvolvimento com justiça social. Temos que falar para dentro e para fora, com estratégias de como apoiar, de como investir, de como ser parceiros”.

“E como a gente faz isso sem governo? Sem mudar o DNA desse Estado? A gente chegou construindo uma secretaria nacional. Não existe outro lugar na gestão pública em que a pauta LGBTQIA+ esteja em tão alto escalão. É muito orgulho pra gente. Mas isso não pode ser apenas uma simbologia, isso tem que ser vida real”, destacou.  

Mesa Redonda –  Dando continuidade ao evento, após a exibição de vídeo muito aplaudido pela plateia com falas dos colegas Isabel Zborowski, Thássio Ferreira, Vinicius Costa, Danilo Amorim e Rodrigo Parra, foi realizada uma Mesa Redonda sobre “Senso de Pertencimento”, com as presenças de Samuel Gomes e Symmy Larrat e a participação de empregados do Banco: os superintendes Juliana Santos Cruz (Área Jurídica de Negócios), Marco Aurélio Cardoso (Área de Controladoria) e Nabil Moura Kadri (Área de Meio Ambiente), a economista Renata Del Vecchio Gessullo e o advogado Thássio Ferreira, que comandou a atividade e abriu sua fala fazendo alguns agradecimentos: “Quero começar agradecendo a todo mundo que está aqui no palco, que se dispôs a participar, todo mundo que está na plateia, que se dispôs a assistir, e quem está assistindo a gente online. Agradecer à direção da Casa por essa oportunidade única de a gente trazer esse tema que já era hora de ser trazido com esse grau de empenho, com essa força, aqui para o BNDES. Acho que é muito importante a gente ter essa oportunidade de ver essa casa cheia. Quero agradecer à AFBNDES por ter, desde o início dessa nova gestão, estimulado a criação de comissões de diversidade em suas diversas acepções, à ARH, por ter patrocinado essa agenda, às pessoas que fazem parte da Comissão de Diversidade LGBTQIA+ e, por último, fazer um agradecimento especial ao Paulo André [Ortega], que não pôde estar aqui com a gente por um problema de saúde”.

Thássio Ferreira estimulou a conversa e a roda de impressões sobre o tema “Senso de Pertencimento” com alguns questionamentos: “O que é pertencer para você?”; “Como foi a trajetória de vocês na dimensão LGBTQIA+ no BNDES?”; “Que atitudes colegas tiveram com vocês no sentido do acolhimento?”. Thássio também leu alguns depoimentos de colegas a respeito dos temas.

Últimas falas – O evento foi finalizado com falas de dois integrantes da Comissão de Diversidade LGBTQIA+, Rodrigo Parra e  Isabel Zborowski. “É um orgulho estar aqui. A primeira palavra do nome do nosso evento diz tudo, exatamente o que a gente sente. Quero agradecer a todos por estarem aqui, por compartilharem esse momento conosco. Isso é histórico. Quero agradecer imensamente à AFBNDES, que tem trabalhado fortemente na questão da diversidade, criou as comissões e as abrigou na sua estrutura. E quero fazer um agradecimento especial à Pauliane [Pauliane Oliveira, vice-presidente da Associação], uma longa defensora da nossa agenda de diversidade, inclusão e equidade. Ela abraçou a iniciativa de criar pilares de diversidade dentro da AF. E foi através das comissões que nós conseguimos criar hoje o nosso projeto corporativo de diversidade e inclui-lo como um tema da estratégia do Banco. A gente espera que esse evento seja o primeiro de muitos e que a gente possa ter continuidade ao longo dos próximos anos, porque diversidade é um tema que precisa ser trabalhado todo dia, em todos os lugares, por todos nós”, disse Rodrigo Parra.

“Pessoal, obrigada pela presença. Muito emocionante a realização desse evento. Queria dar parabéns aos colegas que deram depoimentos, pela coragem de terem dado esse primeiro passo. A gente sabe que tem muitas pessoas no Banco que ainda não tiveram essa coragem. Então, gostaríamos de deixar a mensagem de que a gente está à disposição para o que for preciso, caso queiram conversar, queiram acolhimento ou simplesmente sair para beber um chopinho porque ninguém é de ferro. A gente tem relatos muito positivos, nos últimos meses, de pessoas que  nunca tinham se sentido tão pertencentes à instituição quanto agora. Nós estamos aqui. Obrigada”, finalizou Isabel Zborowski.

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