Na madrugada
deste sábado,
despertei com
uma ideia
esquisita: a de
que, hoje, ao
fim da jornada
de trabalho, no
exato momento em
que “passasse o
crachá”, eu
estaria deixando
de pertencer ao
quadro de
empregados do
BNDES, a que
dedicara metade
de minha vida.
Sim, um gesto
antes tão
corriqueiro, tão
banal,
converter-se-ia
num “abre-te,
Sésamo” às
avessas que me
cerraria para
sempre a porta
de serviço da
Casa. E minha
mão não seria
mais sentida,
nem minha voz
escutada... Ah,
confesso, foi
como cair na
cilada de um
Fado perverso!
Pois aí é que eu
vi que estava a
perder meu maior
bem, aquilo que
me justifica:
minhas
obrigações de
homem válido,
prestante. E a
aposentadoria me
pareceu pela
primeira vez,
amargamente, uma
espécie de morte
civil. Ou uma
prisão de grades
invisíveis, onde
o prisioneiro
está condenado à
perpétua
inatividade.
Mas era só o
começo, a emoção
que me acordou
naquela
madrugada tinha
motores mais
possantes e
específicos.
Representando a
quarta ou quinta
geração da
família na
burocracia do
Estado, eu posso
me dizer da
casta dos
funcionários. E
sabia, já antes
de entrar, que
trabalhar no
BNDES era ter a
chance de fazer
serviço público
do mais alto
nível moral e
intelectual. De
servir da melhor
maneira ao
Brasil, que é
meu xodó de
menino. Que até
hoje me inspira
um sentimento de
aluno de Grupo
Escolar.
Daqueles que
agitavam
bandeirinhas e
cantavam nos
desfiles:
Brasil, teu povo
é forte,
como é grande a
tua terra.
E cada dia
vivido na
Instituição só
fez confirmar as
minhas
esperanças.
Todas as chances
me foram dadas:
de participar
da análise de
inúmeros
negócios; da
direção de uma
empresa
temporariamente
em suas mãos; de
missão oficial
no Exterior; de
privatizações;
de cargos de
gerenciamento
neste
Departamento...
E isso me dava
um orgulho
enorme. Era como
se do Banco eu
tivesse recebido
de presente uma
camisa vistosa.
E eu amei tanto
usá-la e tantos
anos se passaram
que, agora, na
hora de
desvesti-la, eu
vejo que ela não
sai. Está
impressa,
tatuada, virou
pele..
Os
companheiros...
O nosso
Departamento
sempre teve para
mim um certo ar
de praça-forte,
na qual vivíamos
aquartelados, e
da qual
regularmente
saíamos aos
grupos para
missões de
trabalho. Para
enfrentar o novo
e o imprevisto,
“correr mundo,
correr perigo”,
ao pé da letra
caetana. E
assim, dia após
dia, com mãos
coletivas, fomos
escrevendo a
nossa saga.
Quantas
iniciativas boas
não ajudamos a
realizar!
Quantos projetos
ruins não
contribuímos
para barrar!
Aprendemos (com
os mais velhos,
uns com os
outros, com os
erros e os
acertos) algo do
saber que mais
vale: o saber
fazer. E a
paixão de fazer.
E encontramos os
irmãos do
coração.
Diferentes nos
sobrenomes
(Vieira, Dehner,
Santos, Freitas,
Bandeira de
Mello, Fitipaldi...),
mas tão afins no
sentir e no agir
que a flor da
fraterna afeição
inevitável se
fez. Ah, quem
bota preço
nisso?!
Minha geração
atuou num
período
eletrizante da
história do
País. Vimos e
vivemos de tudo
o que cabe entre
a danação e a
bem-aventurança.
E só ao tédio
fomos poupados.
E nosso
desempenho no
Banco não foi
menos que
espetacular.
Transformamos
uma
ex-autarquia,
que era pouco
mais que um
braço do
Tesouro, no
primeiro ou
segundo banco de
desenvolvimento
do planeta. E
para isso, era
preciso fazer, e
fizemos, uma
revolução de
produtividade.
Como poucos,
hoje podemos
dizer: missão
cumprida! Agora,
o Banco bota
pilha nova,
entram em massa
os jovens e sua
responsabilidade
histórica é não
retroceder, mas
avançar e
avançar. Não me
preocupo
demasiado. Entre
os
recém-chegados,
vejo gente que,
definitivamente,
é do Bem: digna,
sensata,
preparada e com
gana de
trabalhar. Para
não me afastar
mais que sete
metros de minha
antiga mesa:
Gustavo, nosso
benjamim (que às
vezes dava a mim
a impressão de
que já nascera
diplomado,
bacharel em
Direito...), com
que zelo advoga
os interesses do
Banco! E que
joia de rapaz!
Ricardo
Rodrigues, meu
substituto, mal
desembarcou,
aprendeu o
grosso do
serviço e, no
sábado passado,
já encarou
trabalho extra.
E nesta
segunda-feira,
antes do
amanhecer, saía,
fagueiro, para
seu primeiro voo
de combate...
Mas volto a
minha madrugada
dantesca e lhes
digo: foi uma
descida ao
Inferno. E eu a
fiz só, sem
Coeli, Thaís,
nem Beatriz...
Dela, porém, já
estou tratando
de me curar
devagarinho.
Prisioneiro, mas
com direito a habeas
corpus: o
bem perdido de
volta, sob a
forma de novas
obrigações que
hei de inventar.
Morto, de
cujus, mas
que almoça e
janta. E
discursa em seu
velório... Antes
assim!... Do que
não vou nem
quero nunca me
curar é da
saudade do Banco
e da saudade dos
companheiros.
Por isso, o luto
que botei
naquele sábado
prossegue nesse
instante. Essa
homenagem me
consola e
alivia. Mais uma
delicadeza de
vocês, vocês que
um dia me
disseram que
ficasse... De
novo e sempre,
obrigado! Mas
não há como não
estar pensando
que, ao sair
desta sala,
terei pela
última vez de
fazer aquele
gesto outrora
tão rotineiro. E
a melodia triste
insiste em tocar
dentro de mim. E
me faz repetir e
repetir, palavra
por palavra, a
letra de
Borges:
...el instante,
ceniza, no
diamante,
y sólo lo pasado
es verdadero.
Quinta-feira, 16
maio/2008
*Palavras
proferidas no
dia da
aposentadoria.