Opinião

Edição nº1550 – sexta-feira, 7 de julho de 2023

Um adeus às armas (do baú de guardados, 2008)*

Luiz Alfredo Raposo – Aposentado do BNDES

Na madrugada deste sábado, despertei com uma ideia esquisita: a de que, hoje, ao fim da jornada de trabalho, no exato momento em que “passasse o crachá”, eu estaria deixando de pertencer ao quadro de empregados do BNDES, a que dedicara metade de minha vida. Sim, um gesto antes tão corriqueiro, tão banal, converter-se-ia num “abre-te, Sésamo” às avessas que me cerraria para sempre a porta de serviço da Casa. E minha mão não seria mais sentida, nem minha voz escutada... Ah, confesso, foi como cair na cilada de um Fado perverso! Pois aí é que eu vi que estava a perder meu maior bem, aquilo que me justifica: minhas obrigações de homem válido, prestante. E a aposentadoria me pareceu pela primeira vez, amargamente, uma espécie de morte civil. Ou uma prisão de grades invisíveis, onde o prisioneiro está condenado à perpétua inatividade.

Mas era só o começo, a emoção que me acordou naquela madrugada tinha motores mais possantes e específicos. Representando a quarta ou quinta geração da família na burocracia do Estado, eu posso me dizer da casta dos funcionários. E sabia, já antes de entrar, que trabalhar no BNDES era ter a chance de fazer serviço público do mais alto nível moral e intelectual. De servir da melhor maneira ao Brasil, que é meu xodó de menino.  Que até hoje me inspira um sentimento de aluno de Grupo Escolar. Daqueles que agitavam bandeirinhas e cantavam nos desfiles:

Brasil, teu povo é forte,

como é grande a tua terra. 

E cada dia vivido na Instituição só fez confirmar as minhas esperanças. Todas as chances me foram dadas: de  participar da análise de inúmeros negócios; da direção de uma empresa temporariamente em suas mãos; de missão oficial no Exterior; de privatizações; de cargos de gerenciamento neste Departamento... E isso me dava um orgulho enorme. Era como se do Banco eu tivesse recebido de presente uma camisa vistosa. E eu amei tanto usá-la e tantos anos se passaram que, agora, na hora de desvesti-la, eu vejo que ela não sai. Está impressa, tatuada, virou pele..

Os companheiros... O nosso Departamento sempre teve para mim um certo ar de praça-forte, na qual vivíamos aquartelados, e da qual regularmente saíamos aos grupos para missões de trabalho. Para enfrentar o novo e o imprevisto, “correr mundo, correr perigo”, ao pé da letra caetana. E assim, dia após dia, com mãos coletivas, fomos escrevendo a nossa saga. Quantas iniciativas boas não ajudamos a realizar! Quantos projetos ruins não contribuímos para barrar! Aprendemos (com os mais velhos, uns com os outros, com os erros e os acertos) algo do saber que mais vale: o saber fazer. E a paixão de fazer. E encontramos os irmãos do coração. Diferentes nos sobrenomes (Vieira, Dehner, Santos, Freitas, Bandeira de Mello, Fitipaldi...), mas tão afins no sentir e no agir que a flor da fraterna afeição inevitável se fez. Ah, quem bota preço nisso?!

Minha geração atuou num período eletrizante da história do País. Vimos e vivemos de tudo o que cabe entre a danação e a bem-aventurança. E só ao tédio fomos poupados. E nosso desempenho no Banco não foi menos que espetacular. Transformamos uma ex-autarquia, que era pouco mais que um braço do Tesouro, no primeiro ou segundo banco de desenvolvimento do planeta. E para isso, era preciso fazer, e fizemos, uma revolução de produtividade. Como poucos, hoje podemos dizer: missão cumprida! Agora, o Banco bota pilha nova, entram em massa os jovens e sua responsabilidade histórica é não retroceder, mas avançar e avançar. Não me preocupo demasiado. Entre os recém-chegados, vejo gente que, definitivamente, é do Bem: digna, sensata, preparada e com gana de trabalhar. Para não me afastar mais que sete metros de minha antiga mesa: Gustavo, nosso benjamim (que às vezes dava a mim a impressão de que já nascera diplomado, bacharel em Direito...), com que zelo advoga os interesses do Banco! E que joia de rapaz! Ricardo Rodrigues, meu substituto, mal desembarcou, aprendeu o grosso do serviço e, no sábado passado, já encarou trabalho extra. E nesta segunda-feira, antes do amanhecer, saía, fagueiro, para seu primeiro voo de combate...

Mas volto a minha madrugada dantesca e lhes digo: foi uma descida ao Inferno. E eu a fiz só, sem Coeli, Thaís, nem Beatriz... Dela, porém, já estou tratando de me curar devagarinho. Prisioneiro, mas com direito a habeas corpus: o bem perdido de volta, sob a forma de novas obrigações que hei de inventar. Morto, de cujus, mas que almoça e janta. E discursa em seu velório... Antes assim!... Do que não vou nem quero nunca me curar é da saudade do Banco e da saudade dos companheiros. Por isso, o luto que botei naquele sábado prossegue nesse instante. Essa homenagem me consola e alivia. Mais uma delicadeza de vocês, vocês que um dia me disseram que ficasse... De novo e sempre, obrigado! Mas não há como não estar pensando que, ao sair desta sala, terei pela última vez de fazer aquele gesto outrora tão rotineiro. E a melodia triste insiste em tocar dentro de mim. E me faz repetir e repetir, palavra por palavra, a letra de Borges: 

...el instante, ceniza, no diamante,

y sólo lo pasado es verdadero.

Quinta-feira, 16 maio/2008

*Palavras proferidas no dia da aposentadoria.

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Charge de Nelson Tucci

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O apocalipse foi só um começo, por Paulo Moreira Franco

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