“As pedras do caminho, deixe
para trás
Esqueça os mortos que eles
não levantam mais”
(Caetano/Bob Dylan)
Sitting on a sofa on a
Sunday afternoon
Going to the candidates
debate
Laugh about it, shout about
it
When you've got to choose
Every way you look at this,
you lose
(Paul Simon)
Final de junho. Mando para
uma amiga advogada, também
nascida nos sessenta como
eu, um artigo do Greenwald
tratando da decisão da
Suprema Corte americana que
revogou sua própria
interpretação anterior que
tinha criado o direito ao
aborto nos EUA (devolvendo
aos legisladores estaduais o
poder de deliberar sobre).
“Tô nem aí pro stf
americano”
“Vivo no Brasil”
“Você também vive”
“Você acha que o
norte-americano está
preocupado com nosso stf?”
“Patético esse interesse”
“Complexo tupiniquim”
Num certo sentido ela tem
razão. É capaz de eu
acompanhar mais algumas
minúcias de política
americana hoje do que as da
brasileira. Talvez porque
mal eu começava a andar foi
dado um golpe militar neste
país onde nasci, e minha
recém-chegada mãe viu
desligada a democracia da
qual ela tanto gostou. Um
quarto de século se passou
para que ela pudesse votar
em Brizola para presidente.
E, na origem da Redentora, a
paradigmática administração
democrata dos direitos
civis, Kennedy e LBJ. Aliás,
recorde que era Obama o
presidente no Golpe recente
que houve cá. Nas
intervenções militares na
Líbia e na Síria. O mundo
não começou com as
fanfarronadas de Bolsonaro e
a incompetência de Trump.
Mas algo se quebrou no
processo político, tanto lá
como cá. Ou não? Bem, é isso
que pretendo explorar.
Pra começar, faço isso hoje,
não na quinta-feira seguinte
à eleição, mas na quinta da
semana seguinte à eleição. E
ainda não se sabe qual a
composição da Câmara nos EUA
(435 deputados em distritos
uninominais). Isto é
totalmente estranho, não só
estranho em relação às
eleições no resto do mundo,
mas em relação ao que
acontecia nas eleições
americanas meia dúzia de
anos atrás. Causa
perplexidade ver que a
Califórnia, terra do Vale do
Silício, é um dos lugares
onde a contagem ainda irá
demorar.
Historicamente, os níveis de
impopularidade da
administração Brandon-Harris
teriam levado a uma grande
vitória da oposição.
Historicamente, o partido de
oposição costuma crescer na
eleição parlamentar que
acontece no meio do mandato
de um presidente (EUA tem
mandato de dois anos para
deputado e seis para
senador). Historicamente, o
desempenho da economia –
nível de atividade, de
emprego, de inflação – é
crítico neste resultado. E
Brandon tem sido um
fracasso, me perdoem os que
cultuam brandonomics
por aí (entre os quais se
incluem os dois ótimos
economistas que conduzem o
Missão Desenvolvimento – já
a Lavínia é uma economista
formidável, mas não sei a
posição dela a respeito).
Por que essa não catástrofe
aconteceu? Por que sequer
sabemos os resultados?
Pelo andar da carruagem, a
maioria republicana não deve
chegar a dez cadeiras. No
Senado os democratas passam
a ter uma maioria concreta
(contando que os dois
independentes na prática são
democratas: um deles é
Bernie Sanders!). Para se
ter uma ideia, Clinton
perdeu 54 deputados em 1994,
Obama perdeu 64 em 2010,
Trump perdeu 42 em 2018.
Bush ganhou 3, pouco mais de
um ano depois dos aviões
terem acertado as torres
gêmeas.
Algo mudou no processo
eleitoral? Algo mudou no
processo político? Sim e
sim.
Do ponto de vista do
mecanismo do processo
eleitoral americano, houve
uma mudança significativa,
algo que pode parecer uma
expansão do processo
democrático, mas que nós
aqui, pelo teor das
discussões que tivemos sobre
o voto impresso, saberíamos
como algo perigosíssimo. Os
EUA têm mecanismos que nós
não temos, tipo votar pelo
correio. Historicamente isso
era usado por militares fora
de suas bases e por pessoas
idosas ou enfermas. Sob o
pretexto da Covid, no
entanto, isso foi expandido
para quem quiser e da forma
mais leniente possível. Nem
só de medidas “biopolíticas”
se faz o Estado de Exceção
do Amgben: por vezes de
“pacotes de abril”. E
certamente, sob a esmagadora
pressão dos meios de
comunicação
– sejam os antigos,
sejam as plataformas –
mobilizados contra Trump, a
Suprema Corte americana
majoritariamente nomeada por
republicanos se eximiu de
discutir a legalidade de
alterações executivas em
processos que claramente
deveriam ter sido discutidos
e votados pelos
legislativos. O voto pelo
correio foi a grande razão
da vitória dos democratas em
2020, não se tenha ilusões a
respeito. E quem acha que
ele teve o objetivo de
apenas enfrentar a
pandemia...
Ah, sim. Cada estado tem sua
lei a respeito, cada estado
tem sua própria forma de
votar, com máquinas
próprias, com regras
próprias de contestação e
recontagem. Cada estado tem
sua regra de a partir de
quando se pode votar pelo
correio e em que condições
pode fazer-se isso.
Que problema há nas pessoas
terem a praticidade de votar
pelo correio, depositarem
seu voto num envelope numa
urna coletora que está numa
rua, numa biblioteca? Bem,
peguemos um exemplo de onde
os republicanos em 22
conseguiram confrontar o
aparato de coleta de votos
dos democratas: uma urna
numa igreja. Imagine que ao
invés de você ter o trabalho
(e lá o voto não é
obrigatório como aqui) de ir
até o lugar onde está uma
urna para votar na terça
(que não é feriado) da
eleição, você possa votar
duas semanas antes numa urna
que está convenientemente na
sua igreja. Para começar, os
debates eleitorais entre
candidatos deixam de fazer
sentido: eles ocorrem com
votos já tendo sido
executados, e, portanto,
incapazes de serem
alterados. Em segundo lugar,
o voto acontece sob pressão
da comunidade. Não se trata
de uma decisão solitária,
privada.
A campanha deixou de ser uma
campanha de persuasão –
convencer as pessoas a ir
votar e votar no seu
candidato – e passou a ser
de construir aparatos de
identificação e coleta de
votos. Em raros lugares os
republicanos entenderam isso
(Califórnia, por exemplo).
Há quem diga que a questão
do aborto foi crítica. De
fato, parece que mulheres
solteiras foram a demografia
que mais pendeu para os
democratas. E aqui vai um
dos problemas da forma como
a política americana
acontece, os problemas de um
sistema que é participativo
e a participação voluntária
e aberta.
Dependendo do estado e do
partido, a escolha de
candidatos se dá em
primárias, quando eleitores
votam para escolher quem
será o candidato de cada
partido. Isso não
necessariamente leva a
alguém que atenda às
preferências de seu
eleitorado, mas de um
candidato que atenda o mais
engajado setor de seus
eleitores. Se isso ajuda na
mobilização de uma eleição
voluntária, já que essas
pessoas devem estar
mobilizadas para a eleição
de fato, numa eleição em que
as pessoas não estando
mobilizadas votam assim
mesmo a pauta desses
engajados é, por vezes,
radical.
Pegue-se a questão do
aborto. A base engajada
republicana é pela proibição
do aborto, ou ao menos pela
sua liberação em caso de
“falhas da divindade”
(estupro, incesto, risco de
vida da mãe). A maioria das
pessoas, no entanto,
acredita que a mulher deva
ter possibilidade de decidir
voluntariamente sobre sua
gravidez até um número
razoável de semanas (15
semanas, por exemplo, como
foi a lei estadual cujo
exame de constitucionalidade
levou a revisão da
interpretação da Suprema
Corte). Numa situação em que
esse assunto se torna um dos
temas centrais do processo
legislativo, a escolha de um
candidato dessa base
engajada leva a uma
candidatura que está contra
a opinião da maioria das
pessoas. Lembrem-se, voto em
distrito uninominal: um
deputado se elege com a
maioria dos votos. Não há
espaço para minorias
ideológicas que não sejam
maiorias locais em algum
lugar.
Especialmente no que toca ao
Senado e aos governos
estaduais, parte do esforço
democrata foi garantir que o
mais radical dos
republicanos fosse
escolhido. Eles doaram
dinheiro para esses
candidatos em suas
primárias. É como se o
pessoal do PSDB doasse para
fazer de Boulos o candidato
a governador de São Paulo
pelo PT.
Mas nem só os democratas
tinham essa intenção. É
nítido que a liderança
republicana no Senado pouco
contribuiu para que esses
outsiders viessem a se
tornar senadores. E aqui
cabem uma série de cálculos
maquiavélicos. A base
radical engajada é bacana
para fornecer energia e
trabalho voluntário para as
campanhas políticas. Mas não
saia tentando de fato
entregar o que ela quer.
Primeiro, porque atingido o
objetivo ela não tem mais
porque lutar. Segundo porque
o objetivo dela costuma
estar fora do razoável e,
portanto, fora do que o
eleitor que pode mudar de
lado deseja. E assuntos de
interesse universal... bem,
esses vão na contramão dos
interesses de quem ganha
dinheiro, quem dá dinheiro
para campanha e, portanto,
são assuntos que devem estar
bem escondidos,
subordinados.
Um Senado dividido tem uma
grande virtude: basta um ou
dois senadores traírem e se
recusarem a votar algo e
nada avança. Fácil de
enganar a base, fácil de
fazer a maioria se esconder
covardemente de seu
eleitorado. Se você ainda
tem a desculpa de que não
tem maioria, melhor ainda.
Tem mais o que se discutir,
mas o outro lado da
sociedade americana (e a
ocidental, por tabela) se
devorando por dentro vai na
próxima semana.
Atotó Gal! |