Com o crescimento da
extrema-direita no
Brasil e no mundo, seria
interessante clarificar
um pouco os termos mais
utilizados para definir
esse movimento de defesa
dos valores do passado e
de "retorno" a eles,
mesmo quando se mostram
inexequíveis. A direita
e suas vertentes mais
extremadas são
associadas a essas três
correntes: conservação,
tradição e reação. Cabe,
no entanto,
distinguilas.
O reacionarismo tem por
base a recorrente
desvalorização do tempo
presente, em nome de um
passado nostálgico, do
tipo: "Antigamente era
‘assim-e-assado’... bem
melhor do que hoje...".
No geral, esse passado
idílico nem mesmo
existiu. Para ilustrar
podemos fazer referência
a alguns contos e até
filmes cujos enredos se
desenvolvem na Idade
Média europeia. Os
personagens são belos
príncipes e princesas;
cavaleiros e damas
dignos de uma Coco
Chanel, Yves Saint
Laurent ou Lagerfeld.
Nobres bem-falantes
habitando castelos e
palácios suntuosos,
tendo a seu redor
aldeias bucólicas
habitadas por gente
simples, mas boa.
Igrejinhas, casebres
humildes, mas limpos,
com cheirinho de torta
de maçã preparada pela
carinhosa vovozinha;
crianças brincando com
carneirinhos e fazendo
bonecos de neve no
inverno. Tudo digno de
cartão postal.
Pois bem, sabemos que a
realidade dos tempos
medievais não era bem
essa. Nobres fedorentos,
infestados por piolhos,
pulgas e sarnas, tomando
poucos banhos durante a
vida nos seus castelos
imundos, rodeados por
aldeias não menos
infectas. O mínimo de
refinamento pessoal e
ambiental havia ficado
para trás, soterrado
pelas ruínas do Império
Romano. O conhecimento
ficara restrito a alguns
escribas e pensadores da
Igreja. Reis, nobres,
plebeus e camponeses
inevitavelmente
analfabetos. Pois bem,
quando intelectuais
reacionários da
atualidade promovem
ataques à modernidade,
defendendo a Terra
Plana, o geocentrismo, o
criacionismo mais tosco,
a desqualificação das
ciências, a subordinação
incondicional da mulher
ao poder masculino, o
homossexualismo como
doença tratável, no
fundo, aparentam querer
resgatar um passado
impossível de ser
trazido a tempo
presente, mas tais
chistes de
irracionalidade bizarra
são mera aparência; o
que os move mesmo é a
luta pela hegemonia
ideológica no campo do
senso comum; são
gramscianos a sua moda.
Por exemplo: tirante os
interesses da indústria
bélica e a estupidez
pura e simples, há muito
dessa ideologia
reacionária casada com o
liberalismo clássico por
trás da política de
liberação da posse e
porte de armas. A
"saudade" de tempos mais
seguros casada com a
valorização do indivíduo
acima da sociedade, da
coletividade. O
indivíduo, segundo essa
ótica, não deve delegar
ao Estado a
responsabilidade de sua
própria segurança. Deve
ele mesmo defender a si,
sua família, sua
propriedade e bens.
O mesmo acontece em
relação à educação
formal dos jovens. Por
que caberia – dentro
dessa linha de
pensamento – ao Estado
laico determinar o que o
meu ou seu filho(a)
aprenderá na escola? Que
valores e verdades
estarão sendo repassados
em sala de aula? Tais
valores podem ser
contrários aos do
ambiente familiar do
jovem em questão? Podem
ser "moderninhos" demais
e, com isso, solapar as
bases da estrutura
familiar? O ataque ao
ensino público libera
alunos para o ensino
privado ou repassa a
responsabilidade pelo
aprendizado aos próprios
entes familiares. Esse
fato social já acontece
há bom tempo nos EUA,
onde esse ataque ao
ensino público laico é
mais renhido e
sistemático por parte
das forças reacionárias.
Por essas e outras, a
apologia do indivíduo
vai de par com a
apologia do mercado e
sua pretensa "mão
invisível". É por isso
que um bom resumo da
situação atual do
Brasil, que tem os EUA
como modelo (ao menos
nos aspectos mais
perversos da sociedade
norte-americana),
poderia ser este: "Mais
armas, menos
universidades
públicas".
O casamento do
ultraliberalismo com o
reacionarismo cultural
espelha bem o tempo
presente. O fenômeno
manifesto em escala
mundial assume ares de
tragédia em países como
o nosso, cujo nível
civilizacional ainda se
encontra aquém das
conquistas de sociedades
mais desenvolvidas.
Na dinâmica social, o
conservadorismo ainda
procura manter a
tradição sem barrar
totalmente o
desenvolvimento de novas
potencialidades, apesar
de ter certa dificuldade
de aceitar o novo,
principalmente se ele
caminha no sentido de
maior igualdade social.
Já o comportamento
reacionário ambiciona
reverter o movimento da
história, tornando
infecundo o campo das
transformações
comprometidas com a
justiça social –
forçando uma aparente
volta ao passado da
concorrência perfeita do
mercado (que nunca
existiu de fato)
mesclada com alienantes
tradições religiosas.
Combinação ideológica
estranha que não passa
de estratégia para a
permanência de
estruturas perversas de
dominação econômica e
opressão política da
plutocracia reinante.