“The future has
taken root in the
present”
(Merlin em Excalibur)
Um ano, uma semana.
Dois dias depois de
começado aquilo que
os russos
denominaram de
operação militar
especial,
concretamente a
guerra estava
acabada. A força
aérea ucraniana
deixara de existir
como força
operacional. Numa
situação racional a
Ucrânia teria
sentado, negociado
algum tipo de
reconhecimento da
independência das
repúblicas
separatistas e do
reconhecimento do
retorno da Criméia à
Rússia.
A guerra não se
resume às fronteiras
daquilo que deveria
ter sido chamado de
antiga República
Soviética da
Ucrânia, uma
construção
administrativa tão
artificial quanto
aquelas construídas
pelo imperialismo na
África. Como nas
guerras mundiais
anteriores, esta é
uma escalada de
consequências não
esperadas. Sim, esta
é uma guerra
mundial.
Em homenagem aos
americanos e
ingleses que tanto
esforço fizeram,
fazem e farão para
que a guerra vá até
suas últimas
consequências, o
texto está
construído por
bullets a esmo,
as balas perdidas
derrubando uma
combalida
Globalização. Vamos
a elas:
- Entre 14 e 21, o
território ocupado
da oblast de
Donetsk foi
preparado para
travar uma guerra de
trincheiras contra
os russos. Não que
em 22, quando os
ucranianos se
preparavam para
atacar o Donbas,
eles pretendessem
imediatamente fazer
isso. Mas num
momento seguinte de
contra-ataque russo,
o território estaria
preparado. Como
costumava me dizer
uma amiga, o
problema dos pedidos
a Shiva é que ele
atende a seus
pedidos. Os russos,
que tem o péssimo
hábito de estudar
história – e nela as
Verduns e Borodinos
onde se
estraçalharam
exércitos em busca
da vitória –,
simplesmente foram
lentos, graduais,
usando de
artilharia, tempo e
paciência. Há uma
forma de brincar de
trincheiras sem ser
élan vital, e
ela consiste em ver
quem tem mais
garrafa vazia para
vender. Os
ucranianos passaram
quase uma década
criando uma
Maginot moderna.
Já os russos,
produzindo munição e
mantendo as devidas
fábricas ativas.
- Em 1914 a
Inglaterra planejava
submeter a Alemanha
a um grande boicote
econômico. Até a
burguesia inglesa
foi contra, pois a
ela não interessava
acabar com
importantes negócios
só porque uma luta
hegemônica se
travava. O Ocidente
achou que bastaria
aumentar
significativamente o
conjunto de sanções
já existentes sobre
a Rússia, e esta
entraria num tipo de
colapso econômico
que a levaria a
ceder. Problema: a
Rússia se imunizou
durante esta quase
década contra os
eventuais boicotes.
Um país de dimensões
continentais com
autonomia energética
pode fazê-lo (hum,
vocês lembram de
outro país com esse
par de
características?). A
principal (para não
dizer a única) arma
que o Ocidente tinha
fracassou.
- Os russos
concretamente
(ainda) não estão
travando uma Guerra,
mas realizando uma
operação militar
limitada. As
principais unidades
russas estão
posicionadas em
território russo ou
em Belarus. O que
quer dizer que há
muita “garrafa
vazia” pra se
escalar a guerra
ainda. O mesmo não
pode ser dito do
Ocidente. Nas
décadas que seguiram
à reunificação alemã
e à dissolução da
URSS, os EUA
reduziram sua
presença e seus
arsenais na Europa e
os países europeus
reduziram
significativamente
sua prontidão e sua
capacidades
logísticas. Fora
isso, andaram
realizando o pivô
para o Pacífico
(posicionando forças
de forma a mostrar
os músculos para a
China e a Ásia em
geral). Qual seja:
qualquer intervenção
da OTAN no conflito
exigirá, no mais
otimista dos prazos,
muitos meses para
ser preparada.
Coisas como fazer
uma Zona de Exclusão
Aérea não são
viáveis não apenas
porque os sistemas
antiaéreos russos
varreriam os aviões
americanos do ar:
não há uma estrutura
de aeroportos
capazes de operar os
aviões necessários
na Polônia e na
Romênia. Um
significativo
investimento em
adequação teria que
ser feito.
- Quão mais
sofisticado um
equipamento, mais
necessária a equipe
de manutenção que
vai cuidar dele. Há
uma grande ilusão
sobre os pedidos
ucranianos de
equipamento. Eles
não só vão requerer
tropas da OTAN para
operá-los
(“mercenários”
poloneses,
americanos,
ingleses,
franceses): vão ser
necessários
mecânicos,
equipamentos, peças.
Tudo isso envolve
muita gente, muita
coisa a ser
transportada,
mantida, alimentada.
Há limites de
quantos
“mercenários” possam
ser
“voluntariamente”
produzidos no
Ocidente para operar
esse novo exército
ucraniano para
substituir o que
está sendo
gradualmente
sangrado na linha de
frente atual.
- Uma tendência que
começou
significativamente
no Iraque e no
Afeganistão, a
utilização de forças
mercenárias
“nacionais” em
paralelo às forças
militares
tradicionais, se
consolida na
Operação Militar
Especial. Mas se a
Blackwater/Xe/Academi
serviu mais como
força para executar
missões de segurança
e “proteção”, o
Grupo Wagner
concretamente está
executando a parte
ofensiva da guerra
num momento em que
as grandes setas
vermelhas ainda não
foram traçadas no
mapa. Um sintoma da
globalização ou do
enfraquecimento do
Estado Nacional
– o que não
necessariamente é a
mesma coisa.
- A posição da China
hoje é análoga, em
certo sentido, à
posição americana na
primeira metade da
Grande Guerra.
Naquela época havia
uma brutal
dependência de
mercadorias
americanas para
manter a sociedade e
o aparato de guerra
funcionando nas
potências da Entente.
A ilusão de que o
imperialismo daria
um tipo de
dominância/sustentação
não funcionou sequer
para o Reino Unido.
Hoje a fonte de
mercadorias é a
China. Não sei se é
chegado o momento
“Adam Smith em
Beijing” de
transição
hegemônica, não sei
se vem uma mítica
multipolaridade
(devoto de Braudel,
não acredito em
multipolaridade).
Assim como a
centralidade
simbólica de Londres
como centro
financeiro começou a
corroer
significativamente
ante à realidade
material americana
século atrás, o
mesmo pode ser
entendido hoje entre
Wall Street (e seu
red light
district que é a
City), e uma China
que ultrapassa os
EUA hoje até na
produção científica.
- O aparato militar
americano após a
vitória na Guerra
Fria evoluiu em duas
dinâmicas. A
primeira delas foi
uma concentração do
Complexo Militar
Industrial em poucas
empresas
extremamente
insuladas,
lucrativas,
produzindo armas
cada vez mais caras
e “sofisticadas”. O
sintoma maior disso
é o F-35, um avião
que concretamente
não se sabe se de
fato funciona ou
funcionará um dia. A
segunda foi a
transformação das
forças armadas
americanas numa
força de esculacho
especializada em
operar em condições
desiguais de força
contra gente mal
equipada, mal
treinada e de más
intenções. O sintoma
disso é que a
totalidade do
comando do Exército
americano hoje é de
Rangers, uma
infantaria leve
capaz de grandes
feitos pessoais, mas
de baixíssima
utilidade num
confronto contra as
armas combinadas
russas.
- Esqueçam o aparato
de imprensa
ocidental, as
Reuters, NYTS, BBCs,
CNNs, GloboNews.
Elas são um
instrumento de
propaganda cada vez
mais descarado,
inconsistente,
alheio a realidade
do que acontece
nesta guerra. O fato
de que a dita
“extrema” direita
possa estar errada
em muitas coisas (e
estão) não quer
dizer que eles
estejam errados na
sua crítica à
manipulação de/por
esses meios. As
coisas se tornarão
cada vez mais
absurdas pelo fato
de que a revolta com
à destruição da
qualidade de vida
desse Ocidente
Atlântico vai ficar
cada vez mais
intensa. Há que se
tomar cuidado também
com o uso abusivo de
conceitos como
geopolítica ou
hegemonia (para dar
dois exemplos):
essas palavras tem
um significado
histórico, expressam
relações cujas
sutilezas escapam
muitas vezes a
leigos como pessoas
comentando em vídeos
ou tomando cerveja
em Ipanema.
- Quando termina a
Guerra? Na melhor
das hipóteses,
quando os russos,
tendo capturado
Odessa e Kharkov,
sentarem para
negociar um acordo
onde o que remanesce
de Ucrânia vira uma
Costa Rica, sem
forças armadas. Isto
implicaria num
reconhecimento
americano da
validade de todos os
plebiscitos que
levaram Criméia,
Donbas e Novorussia
a se juntarem à
Federação Russa.
Chance? Baixa, bem
baixa. O cenário
seguinte é a
dissolução da OTAN
com a crise política
alemã decorrente do
entendimento gradual
das pessoas de que o
atentado contra o
Nordstream não foi
contra a Rússia, mas
contra a Alemanha.
Se não for
normalizado o
fornecimento de
energia num preço
que torne viável a
sobrevivência da
indústria alemã, as
próximas eleições
serão cataclísmicas,
com a chance do
equivalente alemão
da coalizão
governamental Cinco
Estrelas-Liga que
houve na Itália, que
seria uma composição
do AfD anti-Europa
com o Die Linke, a
esquerda alemã.
Data: segundo
semestre de 2025.
Portanto, anotem
2026, ano em que em
cá havendo marolinha
Lula se reelege,
como ano que tem
tudo para ser muito
tumultuado, não
importa o que
aconteça até lá.
- Entre a pressão de
se manter com o
alinhamento em
relação ao Ocidente
que sempre estivemos
e a realidade
prática de estarmos
nos BRICS, o governo
Lula vai ter que
cortar um dobrado
nos próximos meses.
O fato de que o
atual Ministro das
Relações Exteriores
foi embaixador em
Washington não
contribui nesta
situação. O Brasil
não ter se abstido
na votação contra
guerra, como o
fizeram China e
Índia e, segundo
Pepe Escobar, sequer
ter informado
previamente isso aos
parceiros dos BRICS,
foi um erro
diplomático grave em
minha opinião. Mas
lembremos que Lavrov
e os chineses não
nasceram ontem e
sabem muito bem as
pressões que nosso
governo sofre,
pressões que nem
sempre permitem a
ele ser um “anão
diplomático”. A que
se tomar cuidado
extra, pois conexão
a
emocional/ideológica
de certos elementos
no Governo Lula às
agendas do Governo
Biden é uma ilusão
que pode ser fatal
os interesses do
país no momento.
Faltou falar do
desmantelamento
americano, refletido
em sintomas como o
acidente de trem em
Ohio. Mas isso é
assunto mais longo,
complexo, polêmico,
a ser tratado em
outra ocasião. E não
vai faltar
oportunidade:
catástrofes no
funcionamento da
infraestrutura e do
aparato produtivo
americano estão se
tornando quase tão
comuns como os
massacres em
escolas. |