“Naturalmente,
a aposta das
vulgaridades indecentes
de Berlusconi é que o
povo se identificará com
ele, na medida em que
personifica ou encena a
imagem mítica do
italiano médio:
‘Sou
um de vocês, um tantinho
corrupto, tenho
problemas com a lei,
traio minha esposa
porque sinto atração por
outras mulheres...’.
(...) Mesmo que
Berlusconi seja um
palhaço sem dignidade,
não deveríamos rir dele;
fazendo isso, talvez já
estejamos entrando em
seu jogo. O riso dele
parece mais o riso louco
e obsceno do inimigo do
super-herói num filme do
Batman ou do
Homem-Aranha. Para
termos uma ideia da
natureza de seu domínio,
devemos imaginar algo
como o Coringa de Batman
no poder. O problema é
que governo tecnocrata
associado a fachada de
palhaço não é o
suficiente: é necessário
algo mais, ou seja, o
medo. Aqui entra a besta
de duas cabeças de
Berlusconi: os
imigrantes e os
‘comunistas’
(nome genérico que
Berlusconi aplica a
todos que o atacam,
inclusive à Economist,
uma revista liberal
britânica de
centro-direita”)
–
Zizek, uma dúzia d’anos
atrás.
Assim como não consigo
ver este governo
chegando à sua morte
natural ao final de
2022, não consigo
construir uma história
consistente de como ele
acaba antes. Consigo ver
esta fraude que é Guedes
caindo em breve, fusível
queimado, vítima do
fracasso de seus
expirados dogmas. Não
consigo ver quem o
substituirá. Já Jair...
Aliás, breve parênteses:
mais um dogma está sendo
derrubado: as taxas
baixam e o investimento
não vem. Será que o
investimento tem
a ver
com uma coisa chamada
“demanda”? Arthur, será
que agora largamos a
discussão de perfumarias
como TLP e partimos para
uma discussão dos
limites autoimpostos
ao Estado brasileiro? Da
letra miúda e da
mesquinhez que nos
impede de operar com o
Estado, para o Estado, e
não apenas fatiando o
Estado em assets
a serem consumidos pelo
mercado financeiro?
Mas volto a Jair. Ao
governo de Jair. Ao
longo trecho de Zizek
com que abri o artigo.
Se ao lado dos reis de
outrora havia espaço
para
o Bobo,
e
se este cumpria o seu
papel de crítico em meio
à corte, na forma
espetacular do poder
contemporâneo, onde tudo
é te(r)atralizado, o
próprio poder nominal
parece assumir o papel
vulgar, o papel do real
enquanto cotidiano banal
e despossuído de ritual
e decoro, o papel de um
personagem de reality
show, fragmento raso
de humanidade presa em
clichês feitos para nos
fazer cães salivantes.
Se ainda põe leite
condensado nos
cafés da manhã
durante a campanha ou se
ao álcool misturo
romance com safadeza no
voyeurismo escandalizado
do BBB, estamos no mesmo
truque narrativo da
reality, de um
espetáculo que
discutimos como se
ficção não fosse, como
se após o buraco da
fechadura algum ato
estivesse fora das
possibilidades do spin
de um script. Boris,
Donald, Jair – assim
como o ancestral Sílvio
– são as variantes a dar
patadas dessa política
endemol.
Atente-se: Jair não
governa. Ele dá sinais
claros de que não é
capaz de dirigir um Uber
sequer – quanto mais
esta birosca à beira do
Atlântico Sul. Jair (e
sua prole) cumpre com
notável brilho seu papel
de animador do palácio,
criando uma saturação de
declarações insanas,
polarizadoras, um palco
permanente cujo objetivo
me parece ser explorar o
tipo de ressentimento
populista-reaça que guia
as vítimas da
meritocracia/neoliberalismo,
esta pequena, bem
pequena burguesia. Nós,
burocracia weberiana
desta mui excelente
Caixa Preta achamos sem
sentido; o eleitorado
que lhe dá suporte nos
acha um bando de pessoas
metidas, arrogantes, e
com um salário muito
além do que ele acharia
no tal do mercado. Eles
são mais, e o
Estado
concursado vai
gradualmente sendo
destruído sob os
aplausos de quem acha
que irá tomar o lugar
dele.
Quem é a base
tecnocrática que governa
para Jair? Mais do que o
Posto Ipiranga com a sua
entourage de
anões do mercado e
fantasminhas camaradas,
mais do que olavistas e
pastores brigando sobre
quem irá falar em
línguas, Jair está
cercado por um núcleo
militar. Com a saída de
Onyx, os postos
ministeriais que
secretariam o governo
–
a cabine de comando
deste novo Boeing
–
estão todos em mãos
militares. Há quem diga
que a própria
candidatura de Jair é um
projeto militar, o
reconhecimento por parte
de um núcleo em torno do
general Villas Boas de
que a situação do país
era de decadência moral
e ideológica completa, e
de que Jair, com sua
grande popularidade
seria o nome ideal para
conduzir a face pública
de
uma grande operação de
tomada do poder pela via
eleitoral. Conspiração
ou não, essa teoria se
verdadeira traz um
problema, que, espero,
seja imprevisto.
Durante quase três
décadas Jair foi o
porta-voz das forças
permanentes de segurança
pública deste país. Não
só militares, mas um
contingente mais
numeroso, com pleno
controle do território.
Policiais militares,
bombeiros, categorias
que não têm
direito a greve, que
estão sujeitas a
punições disciplinares
muito mais intensas e
arbitrárias que o
restante dos servidores
públicos, tiveram em
Bolsonaro um aliado, um
irmão, alguém para
defendê-los. E a eles
Jair é fiel, como se viu
no recente motim
acontecido no Ceará. Ou
na defesa daqueles que,
membros que um dia foram
do aparato de segurança,
deixaram-se seduzir pela
vida do crime. Jair (e
seus filhos) os veem
ainda como portadores de
um sacramento da
segurança pública,
heroicos caveiras para
todo o sempre.
A questão é: essa
liderança sobre as
forças de segurança do
que deveria ser a pessoa
que anima o circo
enquanto rareia o pão,
ela fazia parte da
equação? O Exército está
de boa com o que
aconteceu no Ceará? O
Exército não sabia da
proximidade de pessoas
que deixaram-se
corromper em seus votos
de manter a ordem
pública e passaram, por
exemplo, a proteger
contraventores, com um
candidato a presidente
que era vigorosamente
apoiado dentro da
própria instituição?
Esse o nó górdio da
questão de como se
poderia resolver este
pequeno acidente
histórico chamado Jair.
Quem o tira? Quem
comanda o cabo e o
soldado que o irão
conduzir para fora do
Planalto? Um nó górdio
se resolve com uma
espada – mas esta terá
condição de enfrentar
uma sublevação das PMs?
Terá disposição de pagar
o preço de seguir
Mourão, o Itamar
militar?
O
homem é o
lobo
dos
homi. |