21 de agosto de 2008

CICLO BNDES – 1

BNDES-TESOURO
Por uma Política Monetária de Longo Prazo

fernando garcia

Hélio Pires da Silveira (*)
Gustavo Galvão dos Santos (*)

Finalizamos o último “BNDES sempre!” afirmando que, ao contrário da dupla “Tesouro-Fed”, que atua sintonizada com os níveis da atividade econômica e o de desemprego nos EUA, aqui o Banco Central, de forma independente, foca sua atuação apenas na meta de inflação. Vemos, preocupados, que a utilização unicamente da elevação da taxa de juros de curto prazo, apreciando o Real, poderá prejudicar seriamente o balanço de pagamentos. Como contraponto, apresentamos a tese de que o BNDES, atuando em dupla com o Tesouro, e à luz das “Finanças Funcionais”, poderia agir, à semelhança do Tesouro-Fed, focado em metas de crescimento e desenvolvimento.

Lembramos, no texto, que o Brasil seguiu, na década de 90, junto com outros países, os ditames do “Consenso de Washington”, e o resultado foram anos de baixo crescimento. Agora, contrariando as regras do “Consenso”, as autoridades norte-americanas agem como “segurador e emprestador de última instância”, cientes de suas responsabilidades de manter a higidez e solvabilidade do seu sistema financeiro privado, a despeito das críticas dos economistas ortodoxos. Em resumo, lembramos que, ao contrário da pregação liberal, de minimização da atuação do Estado, o mundo aprendeu desde os anos 30 “que só a intervenção conjunta do ‘Grande Governo’ e do ‘Grande Banco’, em outras palavras, da dupla Banco Central-Tesouro, corrige e segura os excessos das crises financeiras recorrentes, bem como mantém a Economia no rumo do pleno emprego”.

Então, a partir da análise de nosso momento econômico, vemos que o governo não está aprendendo as verdadeiras lições que vêm do Norte.

Nas horas críticas, o Estado e o Congresso norte-americanos autorizam gigantescas emissões monetárias, sem contrapartidas fiscais, para segurar as irresponsabilidades e excessos do sistema financeiro. Em suma, neste momento, deveríamos fazer o que eles fazem e não o que eles “recomendam” que façamos.

Nesse contexto, onde vemos, preocupados, a atuação do nosso Banco Central voltado, apenas, para o curto prazo, sem nenhuma visão estratégica, nos sentimos na obrigação de lançar, ao debate, nossa tese de atuação conjunta BNDES-TESOURO, para atuação no médio e longo prazos, visando Desenvolvimento & Pleno Emprego.

Finanças Funcionais

(Para desenvolvermos a tese “BNDES-TESOURO – Por uma Política Monetária de Longo Prazo”, contamos com a colaboração de nosso colega Gustavo Antônio Galvão dos Santos, economista e Doutor em Finanças Funcionais pela UFRJ, que também participa do Conselho de Colaboradores do Círculo do Desenvolvimento e do Conselho Deliberativo da AFBNDES).

Nossa preocupação é não perder a janela de oportunidade que o contexto nacional e internacional está nos oferecendo e não desperdiçar o crescimento que estamos vivenciando, que poderá ser abortado pela elevação dos juros. Isto só beneficia os “rentistas – detentores da dívida pública”, além de prejudicar o equilíbrio das contas externas. Por outro lado, nos preocupamos com o não aproveitamento das lições internacionais que estão minando a “fortaleza do pensamento ortodoxo” e que nos permitiriam avançar para uma verdadeira política de desenvolvimento, para o resgate da dívida social, e caminhar para o Pleno Emprego.

Mas, afinal, o que são as Finanças Funcionais?

Finanças Funcionais foi uma idéia desenvolvida pelo economista keynesiano Abba Lerner, preconizando que, dentro do conceito da “Demanda Efetiva” de Keynes/Kalecki, nenhum Estado, livre emissor de sua própria moeda, através do Tesouro, está impedido de realizar gastos públicos de forma não-inflacionária. Esse poder decorre da capacidade de “impor” impostos, porém a teoria mostra que não há qualquer necessidade de metas fixas na relação entre gastos e arrecadação. Ou seja, o valor do déficit ou da dívida pública não é restrição à capacidade de gasto do Estado, como mostra claramente a experiência americana atual e a história mundial.

Abba Lerner propõe que, para manter a generalidade da afirmativa acima, é necessário manter uma política de câmbio flutuante, controle de capitais e evitar restrições externas pela assunção de grandes obrigações em outras moedas sobre as quais não se tenha ingerência. Ou seja: o volume correto de gastos públicos não é aquele pregado pelas “Finanças Saudáveis” do equilíbrio fiscal sob o regime “moral” da “responsabilidade fiscal”, mas, sim, aquele capaz de produzir o pleno emprego sem gerar um processo de espiral inflacionária.

Finanças Funcionais é uma teoria extremamente simples e lógica. Ela é coerente com diversas obviedades que a ortodoxia econômica tenta esconder. Um princípio básico é que o gasto só pode ser realizado antes da arrecadação dos impostos. Caso contrário, não haveria como as pessoas pagarem os impostos, pois eles são pagos em moeda estatal previamente emitida. E os impostos precisam ser significativamente menores do que os gastos públicos previamente realizados, caso contrário, a maior parte da riqueza financeira do setor privado retornaria para o governo. Há uma imagem fácil de entender, se um governo quer desenvolver uma região nova, ele precisa primeiro contratar gastos, realizar investimentos, pagar salários pela emissão de dinheiro, para depois “impor” impostos (como a palavra diz, imposto pelo Estado). Por essa concepção o déficit público é necessário para que o público detenha numerário em mãos, na forma de moeda para as transações ou em títulos públicos, no sentido de atender o desejo das pessoas de deter um instrumento público seguro de poupança.

É importante que fique bem clara a idéia de que o governo emite moeda ou títulos e “impõe” impostos para realizar o funcionamento econômico e levar a Economia ao Pleno Emprego. Ele pode realizar investimentos públicos sem a necessidade de um orçamento prévio e cobertura de impostos, portanto, orçamento público é apenas uma peça contábil de intenção de gastos ou de investimento e não uma restrição econômica real. Se o orçamento “ex-post” se mostrar deficitário, diz apenas que o setor privado está mais desejoso em reter ativos financeiros públicos como reserva de valor do que fazer gastos e investimentos, não gerando base para o aumento significativo da arrecadação de impostos. Ao contrário, se o orçamento “ex-post” se mostrar superavitário, antes de mostrar uma “austeridade responsável”, diz apenas que o investimento público induziu o setor privado a gastar mais, e, portanto, gerou grande aumento de impostos.  

(Gustavo Galvão se compromete a traduzir, didaticamente, sua tese de Finanças Funcionais e disponibilizá-la no Círculo do Desenvolvimento para divulgação dos seus conceitos, principalmente, no âmbito do BNDES).

Política Monetária de Longo Prazo

A partir do resumo dos conceitos das Finanças Funcionais, podemos explicitar nossa tese do BNDES-TESOURO: trata-se de livrar o BNDES das amarras de fontes de financia-mentos prévios baseadas em impostos.

Toda a história do BNDES demonstra a importância e responsabilidade da nossa Casa diante do Desenvolvimento Nacional. Fomos competentes, somos reconhecidos por todos os presidentes que por aqui passaram como um corpo funcional de excelência. O BNDES, ou seus técnicos, sempre são lembrados quando se trata de uma missão nova a ser desenvolvida no âmbito da burocracia governamental. Que outro órgão de governo pode dar respostas e soluções para questões sobre energia, aviação, navegação, saneamento, hospitais, políticas de emprego, inovação, indústria, petróleo, transporte, telecomunicações, software, meio ambiente, exportações, infra-estrutura latino americana, desenvolvimento regional, e até financiamento de longo prazo?

Por outro lado, apesar da reconhecida excelência, esse órgão sempre esteve preso a fontes de financiamentos prévios. Adicionais de Imposto de Renda, Pis/Pasep, FAT, sempre estivemos restritos a limites, impostos pelas “Finanças Saudáveis”, conforme Abba Lerner – ou “Finanças Responsáveis”, conforme Kalecki.

Se o BNDES antes navegava relativamente bem com os recursos limitados pela arrecadação de impostos específicos, hoje essas restrições estão se mostrando completamente disfuncionais. O desenvolvimento do Brasil está hoje na sua mais séria encruzilhada. O retorno do crescimento econômico depois do quarto de século de estagnação, o pré-sal, os biocombustíveis, a volta da importância do urânio e a necessidade de uma verdadeira solução coletiva para a Amazônia elegeram o Brasil como a mais nova potência mundial. Essa eleição ainda se deu pelos grandes estrategistas e pela imprensa internacional. O Brasil ainda não acordou para essa realidade. Ela ainda precisa do nosso aval. Vamos ser uma potência ou voltar a ser uma colônia de super-exploração de recursos naturais? A experiência histórica dos grandes exportadores de petróleo e recursos naturais costuma não ser nada bonita. É uma história de sucessivas revoluções, ditaduras, corrupção, golpes e intervenções externas. O mundo está de olho em nossas riquezas na plataforma submarina, na Amazônia e em diversas partes do território. Querem adquiri-las com o mínimo custo e sem agregação de valor internamente. Como podemos mudar isso? Com política pública e financiamento de longo prazo.

Todavia, o BNDES está operando no limite e está sem condições de financiar essa fabulosa mudança de patamar. Se quisermos transformar o pré-sal em riqueza para a população, teremos de produzir as plataformas, navios e quase dobrar nossa capacidade de refino de petróleo. Só isso demandará centenas de bilhões de dólares. Temos ainda que investir na Amazônia, nos biocombustíveis, na produção extra de energia elétrica. Mas não podemos esquecer nossas outras responsabilidades. A indústria brasileira sempre precisou do BNDES, em particular agora com taxas de juros tão altas. As pequenas empresas precisam de maior atenção. A infra-estrutura do país está deficiente. O BNDES tem ainda o lado social que cada vez é mais importante. Isso significa que o orçamento do BNDES precisa mudar de patamar. E isso não vai acontecer com aumento de impostos. O aumento de impostos significa tirar recursos de uma aplicação presente para se colocar em outra. Mas o momento é de investir, para isso é preciso financiamento. Um casal recém-casado enfrenta sempre uma encruzilhada. Precisa de financiamento para comprar sua casa própria, pois se ficar 20 anos pagando aluguel, desperdiçará a chance de construir uma família com segurança e qualidade de vida. O Brasil está em situação parecida: vamos construir nosso novo lar, mais justo e com maior conforto com as novas riquezas descobertas, ou vamos vacilar por medo e deixar a riqueza escorrer pelos nossos dedos para o exterior?

Precisamos mudar o patamar do investimento nacional e, para isso, um novo BNDES será fundamental. Será o BNDES do pré-sal, o BNDES-TESOURO.

Imaginem o BNDES livre das falsas restrições da arrecadação parafiscal para realizar os investimentos necessários; imaginem o BNDES associado ao TESOURO, BNDES-TESOURO, e restringido apenas pelos limites naturais representados pela plena utilização da mão-de-obra e pelos recursos abundantes de nossa natureza. Imaginem um BNDES pró-ativo, apresentando para a sociedade e para o Congresso um Plano de Desenvolvimento Municipal e Regional com cronograma e execução físico-financeira determinado. O BNDES ficaria restrito à apresentação de um Orçamento Indicativo (“ex-ante”) ao Congresso Nacional, e um Demonstrativo de seu desempenho ao término do ano fiscal (“ex-post”).

O BNDES-TESOURO, livre de conceitos micros, do tipo lucro/retorno, fontes de financiamento, e preocupado, apenas, com os aspectos macros, tais como: custo/benefício, avaliação do efeito multiplicador do BNDES na taxa de crescimento do PIB, efeito gerador de impostos e investimentos derivados. É tecnicamente possível, no âmbito das Finanças Funcionais, e politicamente começa a ser viável pela aceitação do conceito, primeiramente, por uma parcela significativa do corpo funcional.

E a inflação?

Como muitos já entenderam, os recursos de um órgão de desenvolvimento de longo prazo só são liberados nas comprovações da efetivação do aumento da capacidade produtiva, significando dizer que, como eles estão condicionados ao aumento da produção, estarão contribuindo com um vetor deflacionário no médio prazo.

Enfim, um novo conceito, no primeiro momento, enfrenta naturalmente desconfiança, entretanto, se ele tem uma base sólida e um terreno fértil, ele certamente frutificará!   

E ainda reduz a dívida pública!

Segundo a teoria das Finanças Funcionais, o aumento da dívida pública é resultado apenas do aumento da riqueza da sociedade, pois na medida em que essa acumula riqueza em investimentos imobilizados, como fábricas e casas, precisa ter um colchão de liquidez para garantir as transações, o pagamento das dívidas, dos impostos e uma reserva precaucionária. Essas coisas só podem ser supridas por títulos ou moeda pública, porque os títulos privados estão sempre associados à dívida privada, não aumentam a liquidez da economia. Aumentar a dívida pública não é critério para restringir um investimento público.

Todavia o BNDES-TESOURO ainda reduz muito a dívida pública!

Quando o Tesouro repassa recursos para o BNDES emprestar para o setor privado fazer investimentos, não está aumentando a dívida publica, pois o governo federal está adquirindo um título do setor privado. Quando o tomador receber esse dinheiro, colocará na sua conta corrente, que levará o banco privado a adquirir títulos públicos. Isso tende a aumentar a emissão de dívida pública, mas sempre menos do que o valor do investimento. Ou seja, de imediato há uma pequena redução da dívida líquida. Todavia, na medida em que o setor privado realiza os investimentos, aumenta a renda da economia através da aquisição de equipamento e obras. Isso gera de imediato um significativo aumento de impostos – 35% do valor do investimento, segundo nossa carga tributária.

Mas não é só isso, numa hipótese bem conservadora, no mínimo 70% do valor do investimento retornará em impostos nos três anos posteriores ao investimento, em decorrência do efeito multiplicador. Se considerarmos os efeitos em cadeia e as economias externas decorrentes do investimento, é muito provável que boa parte dos investimentos financiados pelo BNDES retornem 100% em impostos poucos anos após o financiamento, eliminando toda a dívida pública que o financiamento possa ter gerado. E o setor privado ainda tem que pagar o financiamento com juros, o que fará com que a dívida pública líquida se reduza em decorrência dos financiamentos do BNDES. Isso vale independentemente da diferença entre a Selic e a TJLP, a menos que o valor da Selic seja completamente absurdo, como 40% ao ano.

Situação precária

Nos dias que antecederam a produção desse texto, acompanhamos o esforço do presidente Luciano Coutinho junto ao Conselho de Administração, em busca de mais recursos do FAT, para complementar a necessidade de financiamento, diante da boa demanda de novos empréstimos para o crescimento econômico.

Quanto tempo demorará para os dirigentes desse país entenderem que têm, ao seu dispor, um poderoso instrumento de Desenvolvimento, bastando, para isso, rever conceitos retrógrados e desgastados diante das novas evidências internacionais? Quando nos livraremos dessa situação precária?

PS.: Dando continuidade a este texto e ao artigo “BNDES sempre!”, publicado no VÍNCULO 864, de 31/07/2008, e no blog www.circulododesenvolvimento.org, adiantamos os próximos textos desta série, que serão publicados oportunamente: “BNDESOCIAL” e “BNDES e o PAD”.
(*) Economistas do BNDES.

Texto publicado na edição 867 do jornal VÍNCULO, em 21 de agosto de 2008