Opinião

Edição nº1377 – quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Cursando presidência 101

Paulo Moreira Franco

Economista do BNDES

 

Chegou a nova leva de aprendizes

Chegou a vez do nosso ritual

(Renato Russo)

Façamos à moda de um bom filme: comecemos pelo fim, e aí, em flashback, vamos construindo a história. Até porque, dessa vez, a faço em boa parte a partir da memória e não da exumação de apresentações passadas, dos vídeos dos eventos como eu fiz com Rabellão. Talvez porque no caso de Rabellão fosse divertido rever vídeo e notas. Talvez porque o faça em casa, de férias. Talvez porque em tempos de caça às bruxas não vou sair pedindo os vídeos. Mas a conclusão a que chego é que o Calouro ainda é melhor do que Joaquim. Bem melhor.

Três eventos envolvendo o presidente, dois relacionados ao BNDES Aberto, outro de fim de ano. O primeiro, o anúncio do BNDES Aberto, alvo de um editorial do VÍNCULO, com pelo menos duas coisas que achei profundamente discriminatórias: chamar os gaúchos de camisa polo de gerentes (eles são chefes de dois departamentos enormes) e aludir a coaching a forma empolgada do presidente. Cara, só porque ele frequenta a casa de uma profissional de coaching, a esposa do deputado mais votado do país – honra que anteriormente fora, retrospectivamente, de Celso Russomano, Tiririca, Paulo Maluf, e, maior de todos até então, Enéas Carneiro –, não quer dizer que esse deslumbramento dele venha daí. Engenharia e o desmoronamento do BNDES seria um título mais adequado a estes tempos onde os provedores privados de ordem e segurança não conseguem dar conta dos movimentos de resistência dos materiais, e prédios construídos sequer sem o peso da regulação do Estado desabam por si só.

Mas de resto, o editorial foi muito preciso quanto ao uso de palavras como “empolgado” e “deslumbramento”. Tem algo na empolgação do Gustavo que é ao mesmo tempo estranho, ao mesmo tempo familiar. Levei um certo tempo até entender. Esses são atributos de algo que fomos um dia – calouros na universidade! Aquele momento em que tudo é novo. Aquele momento em que qualquer ideia que você tem é radical e revolucionária. Aquele momento em que tudo ao qual você é apresentado é essencial, em que as pessoas que você conhece são brilhantes, mesmo seu colega sentado ao lado. O calouro é um estado de inocência/ingenuidade junto com uma autoconfiança inerente à adolescência que alimenta um grande potencial de ação e descoberta.

Problema: as sacadas de um calouro (e de seus amigos) em geral são insights nada originais. Alguém já discutiu aquilo, já afundou ou evoluiu com aquela ideia, e lá pela terceira ou quarta década de vida, a pessoa negará ou rirá de como foi no passado. Olhem-se para trás e vejam se já não foram um pouco assim, ou se conheceram alguém assim lá pelos 17, 18 anos.

Mas tendo visto mais que uma apresentação, isso se torna um elemento histriônico, irritante, como se fosse alguém falando para crianças. Algo que, em não parecendo forçado, se de início parece fofo, ao longo do tempo vai se tornando inapropriado, cômico. Talvez um tipo de imaturidade específica da pessoa que foi colhida muito cedo para um determinado campo de atividades/conhecimento, ganhando vasta experiência nele, para décadas depois ser jogada em um campo diferente, campo anterior ao dessa trajetória, num processo de auto renovação profunda. Vi coisa semelhante em um ou outro colega do Banco fazendo mestrado. Gustavo parece ser um cara que pulou rápido de uma rígida formação de engenharia para se tornar um bem-sucedido praticante da arte de ganhar dinheiro. E aí retorna a um civismo do qual andou meia vida afastado.

Nesse sentido, a empolgação com suas vivências em primeira pessoa, como se o Banco não estivesse atuando na área social, em saneamento, com o terceiro setor desde... na minha experiência pessoal, governo FHC. Creio que Gustavo tinha metade da idade que tem hoje, talvez menos. Por exemplo: quando Gustavo traz um ativista profissional para fazer sua pregação (tratarei dela no próximo artigo) para uma presença maciça de jovens terceirizados e de funcionários do Banco que estavam ali de manhã, quase rompendo em choro ao falar emocionado sobre o cara, me recordo da visita de Netinho duas décadas atrás. Uma gerente o recebeu, nem me lembro se o próprio chefe de departamento foi. Mas houve uma fila de mais de uma centena de terceirizados pra pegar autógrafo. Não como evento do Banco, não no auditório, mas auto-organizada, uma fila no S1 se não me falha a memória. Netinho de Paula, de Carapicuíba, cara controverso, tocando um projeto social para sua comunidade de origem. Fundo social, Dona Ruth Cardoso, anos 90.

No entanto, por mais que pareça jovem, por mais que a teia em torno dele se componha em boa parte por pessoas que não chegaram aos “enta”, recordemos que eles são balzaquianos. O que quer dizer que o tempo schumpeteriano em que inocência e genialidade se combinam para produzir o Grande Condé, um Zuck, Bonaparte e seus marechais, Jobs & Woz, Gates & Allen, esse tempo já passou para eles. Aliás, aqui vai um ponto importante desta administração, ponto que sei que desagrada a um monte de colegas: ela veio de armas e bagagens, trouxe seus comissários e companheiros. A isso retorno mais à frente.

Há um segundo item que, sinceramente, depõe contra. O uso da palavra Ricardo Salles ao comentar uma conversa, como se envolvesse uma pessoa com preocupações razoáveis e normais (qual seja, dentro da moda ou da mediana das opiniões informadas sobre as questões de Amazônia e meio ambiente – experts e não produtores de conteúdo viral para batalhadores e taxistas) sobre a questão tratada, desmonta com toda a boa intenção que se queira transmitir. Tipo você falar das dicas de mindfulness e manejo de agressividade que você pegou numa conversa com Felipe Melo.

Numa crítica do Zizek sobre A vida dos outros, ele lembra um trilema (que suponho deva vir de muito antes) sobre como eram as pessoas no Leste Europeu sob as ditaduras. Você podia ter duas de três características: ser honesto e sincero; ser inteligente e entender o que acontece; acreditar no governo e no sistema.

Na melhor das interpretações que se possa ter a respeito, Ricardo Salles é um clown fazendo uma manobra diversionária. Em sendo parte do governo, se é obrigado a trabalhar com ele, a obedecer seus eventuais comandos. Daí a falar disso com empolgação em meio a qualquer público, especialmente em meio a um público qualificado, é convidar o descrédito, contaminar tudo o que você falou antes com essa peça de absurdo. Em suma, embaraçoso.

Nesse sentido, pequena digressão: seria corrupto de minha parte me deixar furtar a comentar o grande twat, perdão tuíte, dos últimos tempos: o imprecionante ministro da educação. Há quem possa ler teabonics – o manejo peculiar da língua das pessoas muito à direita e pouco instruídas nos EUA – neste incidente. Erros há ali, como o uso de você com a segunda pessoa que certamente levariam a um problema numa prova. Mas prefiro ver um ato falho de alguém sendo impreciso, pois boa pesquisa sobre segurança pública há neste país. Apenas ela tem o problema de não corroborar as práticas de violência que o governo e seus eleitores pregam – mas além de português, ciência nunca costumou ser o forte dessa turma. Nem história – e nisso esses sintomas revelam um quadro mais fundo do buraco onde nos encontramos.

Há outro ponto que me incomodou nesse editorial do VÍNCULO: a frase “a magia de Montezano é esconder a absoluta subserviência em relação ao governo federal”. Até onde sei, o BNDES é 100% do governo federal. Até onde sei, Bolsonaro, goste-se ou não dele, foi eleito – ao contrário de Temer – e tem um mandato a exercer dentro dos limites que a lei define. E nesses limites está o Banco.

Montezano pode ter vindo com pautas que divergem muito do que o conjunto dos funcionários do Banco acredita. Mas essas são as pautas do governo eleito. Em relação a Levi, ele veio realmente para ser presidente. Trouxe uma equipe, que, venhamos e convenhamos, não é composta por inocentes, nepotes ou idiotas – e já tivemos deles por cá. São pessoas inteligentes, com experiências profissionais não relacionadas ao específico do Banco, mas que dão sinais de capacidade de aprender. A diretoria está completa e, de alguma forma, tentando tomar pé da coisa. Um cara que não funcionou foi trocado rapidamente, o que é um bom sinal.

Portanto, trazer o Senhor Sinistro para, entre outras coisas, apurar os “equívocos” da era do PT faz parte do seu mandato. Claro que isso traz um problema para a dissonância cognitiva do antipetismo de boa parte dos quadros da instituição, em especial daquele não verbalizado dos apartidários. Deal with it!, pois seus sucessos recentes foram doze anos de governo do PT, e quatro de golpe em seus vários estágios, da gestação pela indiferença ativa à eleição de quem vocês não esperavam. Autocrítica que bate em Chico bate em Francisco.

O fato do país (e do Banco) estar parado, sem perspectivas de crescimento, não é culpa deles (ou do Banco), mas de Paulo Guedes. Este vendeu a Jair Messias um peixe que não existia, e sua hora de fusível a ser trocado chegará não tarda. Nesse sentido, a desatualização de Montezano no campo de economia é uma pena, pois com sua relação próxima com aquilo que é alardeado como núcleo pensante do governo – os filhos – ele é um substituto natural de Guedes.

Mas voltando ao começo, é hora de Montezano concluir a cadeira de presidência 101, de começar a sinalizar a capacidade de entender a complexidade das coisas (como Luciano e Rabello bem faziam), ou transmitir, para quem o quiser ouvir, uma sinceridade cínica e madura (mesmo que cruel) sobre seu projeto (como Maria Silvia). O primeiro semestre terminou, os primeiros trabalhos foram entregues (o dinheiro transferido ao Tesouro por meio de quitação antecipada e de dividendos; o plano trianual; propósitos claros como saneamento; sonhos objetivos como o banco de serviços; o BNDES Aberto – o BNDES Arrombado da desmobilização do patrimônio acionário que exerce poder sobre alguns relevantes detentores de quase-rendas ficou de curse para algum semestre posterior), e pelo visto ele não será reprovado – como seu antecessor.

 

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