Opinião

Edição nº1376 – quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Chacinas

Paulo Moreira Franco

Economista do BNDES

"A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística" (dizem que de Stalin, mas provavelmente falso).

"it’s all business. (…) Numbers sanctify, my good fellow!" (Chaplin)

Faz mais ou menos um ano, dias a mais que arredondam para exato ano, que encontrei um conhecido de mais ou menos quatro décadas. Daquelas pessoas que foram contemporâneas a você em algum espaço, mas nunca propriamente um amigo, alguém que você tenha convidado à sua casa e vice-versa. Ele e a esposa, algo alcoolizado, no Belmonte que fica na mesma quadra de minha morada, onde eu estava dando um pulo em busca de uma empada de carne-seca, o que é bem mais interessante do que assaltar a própria geladeira. Falei de minha análise sobre a eleição de Bolsonaro (a série Grade: F , de uma coisa ou outra de economia, mas quando mostrei meu descrédito sobre a Lava Jato, o cara ficou possesso, e em sua bêbada inocência disse que não falava mais comigo etc. e tal. Karma is bitch, cruzei por fração de segundo com ele e a esposa na rua, corria eu entre um filme e outro do festival, mas não tive chance de perguntar: "e aí, otário, ainda acredita na Lava Jato?" Só deu tempo de um aceno, e envolveu mais que um dedo, coisa educada.

Mas não vou falar aqui da Lava Jato. O curioso é que esse cara, cidadão de bem, faz parte de uma "organização criminosa". Uma organização responsável por bilhões de fraude fiscal, por crimes ambientais, por bilhões e bilhões de reais de patrimônio de vida, de potencial de futuro de pessoas e comunidades destruído... e por massacrar centenas de pessoas. Massacre culposo, vá lá, como se o ato de correr um risco não fosse um ato de cálculo econômico. Esta organização se chama Vale. E o que aconteceu em Brumadinho (e em Mariana) foi uma chacina.

"Nos próximos dois anos estarei lutando pelo desenvolvimento em outra frente...". Assim se despedia de nós um brilhante colega de trabalho, engenheiro do meu concurso, faz uma dúzia de anos. Um tempo antes, não me recordo quanto, ele fez uma palestra sobre estratégia de empresas. Palestra onde, fascinado, falou de como uma empresa criada para tocar um patrimônio privatizado manejava custos de forma rigorosa, obsessiva. O exemplo em questão era troca de trilhos de um lado para o outro, como se você trocasse os pneus mais desgastados de um lado para o outro do seu carro. A empresa, a ALL (as outras duas, à guisa de curiosidade, foram a Oi – também privatização – e a Fogo de Chão – sendo que nesta última a questão de custos também foi destacada). A esse ex-colega nosso coube aparecer por aí, como diretor da Vale, gastando seu media training.

Quando da chacina de Mariana o secretário executivo do MMA era um burocrata de carreira, um esplêndido exemplar da burocracia técnica, profissional, apartidária, antitranspirante weberiana. Um tempo antes ele havia estado no Banco, numa daquelas palestras de sexta que eu frequentava religiosamente. Pois fiquei mudo nesse dia: atônito com a preocupação em "resolver" os problemas do meio ambiente, qual seja, os problemas regulatórios que impediam os negócios de funcionar na devida velocidade. Não vi na imprensa notarem a justiça poética dele, que um dia fora funcionário da CVRD, estar neste cargo no momento "samarcante" de Mariana.

Trinta e cinco anos e alguns dias atrás aconteceu aquele que a Naomi Klein observa (e eu definiria) como o paciente zero da imunidade das grandes corporações globais pelos crimes de descaso cometidos no terceiro mundo. Bhopal, Índia. Alguém pode argumentar que a Vale não pega no juvenil com o que aconteceu ali, tipo comparar Sabra e Chatila com a Floresta de Katyn, como se menos mortos implicassem em menos crimes em algum dilema do bonde do céu. Faço essa piada grotesca mais em relação ao dueto Samarco em Mariana do que na tragédia solo da reincidência de Brumadinho...

Poderíamos desenhar um belo triângulo no globo, com um vértice em Bhopal, um outro a 4,4 mil km à direita entre os paralelos 8 e 9 Sul, e um terceiro indo 5,4 mil km à direita entre os paralelos 8 e 9 Norte. Eu sei que estou trolando com os pobres terraplanistas, pessoas cognitivamente diversas que este governo não discrimina, mas deve haver algum significado de Carvalho entre essas coordenadas. Para mim elas marcam duas chacinas, onde a necessidade de competir em tempo hábil da maior das campeãs nacionais dos EUA levou à morte de centenas de pessoas que sequer usam o alfabeto romano.

Essa campeã nacional americana acaba de tomar a campeã nacional brasileira do setor. Sabe o interesse nacional dos militares brasileiros? Parece que o reconhecimento de que se tornaram uma burocracia técnica, profissional, apartidária, um old spice weberiano capaz de ocupar uma gama variada de cargos no governo, tem o sabor de pão e um prato de lentilhas.

O que une essas chacinas, o que une Vale e Boeing tirando serem campeãs nacionais com importante peso nas exportações de seus países, o que as torna tão próximas daquelas cujos cinco séculos comemoramos a partir desta década que se encerra, que despovoaram a América pra que uma horda de europeus em busca de dinheiro e de africanos trazidos à força a repovoassem? Dinheiro, dívida, ganância com fines de ganancia, greed is god como observa Graeber sobre os conquistadores.

Nesse sentido, nada mais justiça poética que nossos campeões nacionais da finança, aqueles que fizeram do pó vieste ao pó voltarás com a previamente citada ALL, levarem sua lógica de compromisso com o corte de custos para o centro do Império, não derramando sangue, mas ketchup e cotações. Óbvio que isso tem limites, e troca-se de técnico em alguns desses casos.

Aonde quero chegar nessa volta toda? Em primeiro lugar que a ideia da firma buscando reduzir seus custos e aumentar sua rentabilidade a qualquer custo é estúpida. Nos EUA, a cúpula do empresariado já sacou isso, já sacou como esse discurso levou ao estado de anomia e insatisfação generalizada em que aquele país se encontra. E cá? Aqui isso faz parte do credo de Guedes e companhia, dogma central. Faz parte da prática hipócrita de empresários que promovem "renovações" bonitinhas da política e da gestão pública, mas gerem suas empresas sem o menor compromisso senão com o retorno.

Em segundo lugar, há que se considerar o lado banalidade do mal de um bando de burocratas como nós, nas empresas, nos governos, justificando os atos de descaso e violência dentro de uma lógica técnica como se tal coisa existisse na forma pura e idealizada como nos enxergamos. Os casos da Vale/Samarco são casos desses, onde uma série de apostas ideológicas, econômicas, técnicas, se sobrepõe às críticas que a comunidade colocava. E não só no campo dos que só enxergam retorno e custos: no próprio campo progressista. E na própria forma do BNDES interagir e cobrar dessa empresa – e de outras – o propósito e as consequências de seus atos. Há que aprendermos a amar o MAB, amigos, entre outras coisas.

Ao ver o título deste texto, caro leitor, você deve ter se perguntado se eu estaria falando de Paraisópolis. Ali, também um "acidente", produzido por uma burocracia técnica, profissional, apartidária, a serviço da massa cheirosa weberiana. Ou que eu falasse das evidências que levam à casa 58. Esses são assuntos claros, visíveis, a barbaridade a olho nu. Aquela que é entranhada, aquela que é ideologia, esta passa ao largo.

Nesse sentido, tanto a pantomima praticada cotidianamente pelos Weintraubs e Ricardo Salles da vida, com suas declarações provocativas, indigentes, com seus atos cotidianos de destruição de seus ministérios, quanto o caricato discurso de nosso mandatário maior e de sua prole (menos o senador, sintomaticamente), são distrações, distrações para não atentarmos ao que acontece em outras áreas do governo. São confortos para que, na qualidade de nosso entendimento técnico, não vejamos nossos próprios crimes no espelho – e não falo aqui do Banco, de nós como funcionários do Banco, mas nós como membros da professional-managerial class no tempo em que se desvela o Antropoceno. E o ataque cotidiano a esta instituição que não praticou nenhuma "ilegalidade" uma forma de se desviar a atenção das barbaridades cotidianamente cometidas em nome do mercado, em função do lucro. Uma forma de impedir que algo venha a ser feito antes que seja tarde.

18 de dezembro, quarta-feira, três da manhã.

 

 

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