Faz mais ou menos um
ano, dias a mais que
arredondam para exato
ano, que encontrei um
conhecido de mais ou
menos quatro décadas.
Daquelas pessoas que
foram contemporâneas a
você em algum espaço,
mas nunca propriamente
um amigo, alguém que
você tenha convidado à
sua casa e vice-versa.
Ele e a esposa, algo
alcoolizado, no Belmonte
que fica na mesma quadra
de minha morada, onde eu
estava dando um pulo em
busca de uma empada de
carne-seca, o que é bem
mais interessante do que
assaltar a própria
geladeira. Falei de
minha análise sobre a
eleição de Bolsonaro (a
série
Grade: F , de uma
coisa ou outra de
economia, mas quando
mostrei meu descrédito
sobre a Lava Jato, o
cara ficou possesso, e
em sua bêbada inocência
disse que não falava
mais comigo etc. e tal.
Karma is bitch,
cruzei por fração de
segundo com ele e a
esposa na rua, corria eu
entre um filme e outro
do festival, mas não
tive chance de
perguntar: "e aí,
otário, ainda acredita
na Lava Jato?" Só deu
tempo de um aceno, e
envolveu mais que um
dedo, coisa educada.
Mas não vou falar aqui
da Lava Jato. O curioso
é que esse cara, cidadão
de bem, faz parte de uma
"organização criminosa".
Uma organização
responsável por bilhões
de fraude fiscal, por
crimes ambientais, por
bilhões e bilhões de
reais de patrimônio de
vida, de potencial de
futuro de pessoas e
comunidades destruído...
e por massacrar centenas
de pessoas. Massacre
culposo, vá lá, como se
o ato de correr um risco
não fosse um ato de
cálculo econômico. Esta
organização se chama
Vale. E o que aconteceu
em Brumadinho (e em
Mariana) foi uma
chacina.
"Nos próximos dois anos
estarei lutando pelo
desenvolvimento em outra
frente...". Assim se
despedia de nós um
brilhante colega de
trabalho, engenheiro do
meu concurso, faz uma
dúzia de anos. Um tempo
antes, não me recordo
quanto, ele fez uma
palestra sobre
estratégia de empresas.
Palestra onde,
fascinado, falou de como
uma empresa criada para
tocar um patrimônio
privatizado manejava
custos de forma
rigorosa, obsessiva. O
exemplo em questão era
troca de trilhos de um
lado para o outro, como
se você trocasse os
pneus mais desgastados
de um lado para o outro
do seu carro. A empresa,
a ALL (as outras duas, à
guisa de curiosidade,
foram a Oi – também
privatização – e a Fogo
de Chão – sendo que
nesta última a questão
de custos também foi
destacada). A esse
ex-colega nosso coube
aparecer por aí, como
diretor da Vale,
gastando seu media
training.
Quando da chacina de
Mariana o secretário
executivo do MMA era um
burocrata de carreira,
um esplêndido exemplar
da burocracia técnica,
profissional,
apartidária,
antitranspirante
weberiana. Um tempo
antes ele havia estado
no Banco, numa daquelas
palestras de sexta que
eu frequentava
religiosamente. Pois
fiquei mudo nesse dia:
atônito com a
preocupação em
"resolver" os problemas
do meio ambiente, qual
seja, os problemas
regulatórios que
impediam os negócios de
funcionar na devida
velocidade. Não vi na
imprensa notarem a
justiça poética dele,
que um dia fora
funcionário da CVRD,
estar neste cargo no
momento "samarcante" de
Mariana.
Trinta e cinco anos e
alguns dias atrás
aconteceu aquele que a
Naomi Klein observa (e
eu definiria) como o
paciente zero da
imunidade das grandes
corporações globais
pelos crimes de descaso
cometidos no terceiro
mundo. Bhopal, Índia.
Alguém pode argumentar
que a Vale não pega no
juvenil com o que
aconteceu ali, tipo
comparar
Sabra e Chatila com
a
Floresta de Katyn,
como se menos mortos
implicassem em menos
crimes em algum dilema
do bonde do céu. Faço
essa piada grotesca mais
em relação ao dueto
Samarco em Mariana do
que na tragédia solo da
reincidência de
Brumadinho...
Poderíamos desenhar um
belo triângulo no globo,
com um vértice em Bhopal,
um outro a 4,4 mil km à
direita entre os
paralelos 8 e 9 Sul, e
um terceiro indo 5,4 mil
km à direita entre os
paralelos 8 e 9 Norte.
Eu sei que estou
trolando com os pobres
terraplanistas, pessoas
cognitivamente diversas
que este governo não
discrimina, mas deve
haver algum significado
de Carvalho entre essas
coordenadas. Para mim
elas marcam duas
chacinas, onde a
necessidade de competir
em tempo hábil da maior
das
campeãs
nacionais
dos EUA levou à
morte de centenas de
pessoas que sequer usam
o alfabeto romano.
Essa campeã nacional
americana acaba de tomar
a campeã nacional
brasileira do setor.
Sabe o interesse
nacional dos militares
brasileiros? Parece que
o reconhecimento de que
se tornaram uma
burocracia técnica,
profissional,
apartidária, um old
spice weberiano
capaz de ocupar uma gama
variada de cargos no
governo, tem o sabor de
pão e um prato de
lentilhas.
O que une essas
chacinas, o que une Vale
e Boeing tirando serem
campeãs nacionais com
importante peso nas
exportações de seus
países, o que as torna
tão próximas daquelas
cujos cinco séculos
comemoramos a partir
desta década que se
encerra, que despovoaram
a América pra que uma
horda de europeus em
busca de dinheiro e de
africanos trazidos à
força a repovoassem?
Dinheiro, dívida,
ganância com fines de
ganancia, greed is god
como observa Graeber
sobre os
conquistadores.
Nesse sentido, nada mais
justiça poética que
nossos campeões
nacionais da finança,
aqueles que fizeram do
pó vieste ao pó voltarás
com a previamente citada
ALL, levarem sua lógica
de compromisso com o
corte de custos para o
centro do Império, não
derramando sangue, mas
ketchup e cotações.
Óbvio que isso tem
limites, e
troca-se de técnico
em alguns desses casos.
Aonde quero chegar nessa
volta toda? Em primeiro
lugar que a ideia da
firma buscando reduzir
seus custos e aumentar
sua rentabilidade a
qualquer custo é
estúpida. Nos EUA, a
cúpula do empresariado
já sacou isso, já
sacou como esse discurso
levou ao estado de
anomia e insatisfação
generalizada em que
aquele país se encontra.
E cá? Aqui isso faz
parte do credo de Guedes
e companhia, dogma
central. Faz parte da
prática hipócrita de
empresários que promovem
"renovações" bonitinhas
da política e da gestão
pública, mas gerem suas
empresas sem o menor
compromisso senão com o
retorno.
Em segundo lugar, há que
se considerar o lado
banalidade do mal de um
bando de burocratas como
nós, nas empresas, nos
governos, justificando
os atos de descaso e
violência dentro de uma
lógica técnica como se
tal coisa existisse na
forma pura e idealizada
como nos enxergamos. Os
casos da Vale/Samarco
são casos desses, onde
uma série de apostas
ideológicas, econômicas,
técnicas, se sobrepõe às
críticas que a
comunidade colocava. E
não só no campo dos que
só enxergam retorno e
custos: no próprio campo
progressista. E na
própria forma do BNDES
interagir e cobrar dessa
empresa – e de outras –
o propósito e as
consequências de seus
atos. Há que aprendermos
a amar o MAB, amigos,
entre outras coisas.
Ao ver o título deste
texto, caro leitor, você
deve ter se perguntado
se eu estaria falando de
Paraisópolis. Ali,
também um "acidente",
produzido por uma
burocracia técnica,
profissional,
apartidária, a serviço
da massa cheirosa
weberiana. Ou que eu
falasse das evidências
que levam à casa 58.
Esses são assuntos
claros, visíveis, a
barbaridade a olho nu.
Aquela que é entranhada,
aquela que é ideologia,
esta passa ao largo.
Nesse sentido, tanto a
pantomima praticada
cotidianamente pelos
Weintraubs e Ricardo
Salles da vida, com suas
declarações
provocativas,
indigentes, com seus
atos cotidianos de
destruição de seus
ministérios, quanto o
caricato discurso de
nosso mandatário maior e
de sua prole (menos o
senador,
sintomaticamente), são
distrações, distrações
para não atentarmos ao
que acontece em outras
áreas do governo. São
confortos para que, na
qualidade de nosso
entendimento técnico,
não vejamos nossos
próprios crimes no
espelho – e não falo
aqui do Banco, de nós
como funcionários do
Banco, mas nós como
membros da
professional-managerial
class
no tempo em que se
desvela o Antropoceno. E
o ataque cotidiano a
esta instituição que não
praticou nenhuma
"ilegalidade" uma forma
de se desviar a atenção
das barbaridades
cotidianamente cometidas
em nome do mercado, em
função do lucro. Uma
forma de impedir que
algo venha a ser feito
antes que seja tarde.
18 de dezembro,
quarta-feira, três da
manhã.