Muito Além dos buracos de São Paulo

Pedro Cafardo

Editor-executivo do Valor. Artigo publicado na edição de 10/4/2019.

Quem não é de São Paulo, fique sabendo que a maior cidade do país está forrada de buracos em suas vias públicas. Para quem mora na capital paulista, recomenda-se muito cuidado nas ruas, especialmente se o cidadão pretende se arriscar andando de bicicleta ou nos “modernos” patinetes.

Olhando para esses buracos, o paulistano certamente imagina que eles não são tapados por uma dessas três razões: incompetência da administração pública, falta de dinheiro ou as duas anteriores juntas.

Diante de tantas crateras abertas, porém, um viciado em economia talvez se lembre da célebre sugestão do economista John Maynard Keynes: em tempos de crise, o governo deveria contratar trabalhadores, mesmo que fosse para alguns cavarem buracos e outros os taparem.

O conselho histórico e simbólico de Keynes, a propósito da grande depressão de 1929, abre espaço para um pouco de humor – para quem ainda o tem neste momento opaco da economia do país. Se quisesse seguir a sugestão do grande economista, São Paulo nem precisaria contratar ninguém para abrir os buracos.

Falando sério, essa história de abrir e tapar buracos é importante porque nos faz lembrar que a maior batalha da economia brasileira no momento é contra o desemprego. O número é conhecido, 13 milhões, sem contar os desalentados, aqueles que desistiram de procurar trabalho. Tudo isso porque o país viveu uma recessão brutal. O economista José Luis Oreiro, em artigo no Valor, estimou que a retração de 8%, desde 2014, em termos reais, representa uma perda de riqueza de R$ 600 bilhões.

O atual momento se torna ainda mais grave porque os pensadores da economia tendem a discutir apenas um tema: a reforma da Previdência Social. Talvez o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenha razão ao dizer que as pessoas que são contra essa reforma merecem ser internadas. A frase foi deselegante. Mais do que isso, entretanto, ela parece relegar a um segundo plano as raras opiniões de brasileiros bem informados que, acreditando na importância da reforma da Previdência, alertam para o fato de que ela não resolve todos os problemas do país. Nem se deve condicionar tudo ao destino da reforma, como disse o senador José Serra.

André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real, não está sozinho. Desde que publicou no Valor o resumo de seu ensaio “Uma Armadilha Conceitual”, em 8 de março, vem incendiando o debate entre os economistas sobre o momento brasileiro.

Os que receitam a reforma da Previdência como remédio milagroso o fazem por considerar o problema fiscal como um câncer a ser extirpado a golpes de machado. Lara Resende parece não pensar assim. Ele reconhece a importância do déficit da Previdência Social e da crise fiscal, mas observa que responsabilidade fiscal não pode ser confundida com dogmatismo. Considera que o importante não é equilibrar o Orçamento a curto prazo e a qualquer custo, mas tributar e investir bem. Quer uma tributação simples e investimentos públicos eficientes. Em entrevista a “O Estado de S. Paulo”, fez uma afirmação corajosa: “É mais importante tributar e investir bem, com objetivo de aumentar a produtividade e a equidade, ainda que sem equilibrar o Orçamento, do que eliminar o déficit, mas continuar tributando e gastando mal. Isso é verdade sobretudo quando há desemprego e capacidade ociosa”.

Gastar bem, portanto, seria fazê-lo com olho na criação de empregos, não para abrir buracos, naturalmente, até porque o país já tem buracos suficientemente grandes a ser tapados não apenas nas ruas, mas em todas as áreas, principalmente na educação, na saúde e na infraestrutura.

É desolador observar, no atual contexto, que o dogmatismo fiscal está encolhendo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entidade da qual normalmente se espera um grande apoio aos investimentos no país. No ano passado, os desembolsos do banco caíram para R$ 69 bilhões, o menor nível dos últimos dez anos.

Um observador distraído diria “ok, o banco está sem dinheiro, é a crise”. Mas não, ele encerrou 2018 com um lucro líquido de R$ 6,7 bilhões e cerca de R$ 150 bilhões em caixa.

Em vez de aplicar esses recursos para estimular investimentos e crescimento, o banco deverá devolver ao Tesouro mais de R$ 120 bilhões neste ano, um pagamento antecipado de dívida que só venceria em 2040. Esse bolo de dinheiro será “incinerado”, usado com o único objetivo de reduzir a dívida da União. 

Para compensar esse desfalque de caixa, observa o diretor da associação dos funcionários do banco Arthur Koblitz, o BNDES vai buscar empréstimos em dólares em instituições internacionais. “É difícil acreditar que se está considerando destruir recursos em reais mobilizados para o investimento para substituí-los por captação em dólares sujeitas a variações cambiais”, escreveu Koblitz.

Há um problema adicional. Segundo o economista, as devoluções seriam ilegais. O artigo 37 da Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece a vedação ao “recebimento antecipado de valores de empresa em que o poder público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos”. Assim, o governo estaria usando um banco estatal para compensar o descontrole da política fiscal, algo muito parecido com a acusação de “pedaladas fiscais” que, oficialmente, foram a razão do impeachment de Dilma Rousseff.

Sejam pedaladas ou não, o fato é que não se pode esperar grande colaboração do BNDES para expandir o volume de crédito a investimentos no país. Sem reforma da Previdência e sem austeridade fiscal, será o caos, alguém já disse. Mas sem investimentos e sem criação de empregos, não será diferente. Nem é preciso ser economista para entender isso, como não é preciso ser engenheiro para entender a importância da luz elétrica e da água encanada.

 

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