Reflexões sobre a Ética no BNDES – "Nem Torquemada, nem pizza"
 

José Eduardo Pessoa de Andrade
Engenheiro aposentado do BNDES, 1º vice-presidente da AFBNDES
 
A Ética esteve sempre presente na evolução humana. Associada indiretamente aos preceitos e preocupações elaboradas nas diversas religiões ou mais diretamente formalizada nas raízes gregas da tradição filosófica do mundo ocidental, que nos legou a origem (ethos) da atual palavra ética. O mundo oriental também elaborou seu entendimento ético. Esta evolução, porém, não ocorreu de forma linear e foi vivenciada com avanços e retrocessos.

No Brasil, a preocupação com os problemas éticos em nosso comportamento individual e público foi explicitada formalmente por iniciativa da Presidência da República, exercida à época por Itamar Franco, através do Decreto No 1.171, de 22 de junho de 1994. Neste momento, foi aprovado o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, englobando órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta e indireta.

Uma pausa para o exercício de nossa irreverência carioca e brasileira. Esse decreto não deixou de merecer comentários informais e gozadores sobre seus dígitos finais, 171, associados ao estelionato no Código Civil vigente.

Em 1999, já na presidência de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal e a Comissão de Ética Pública (CEP). Essa comissão, com apoio da reflexão teórica do antropólogo Roberto DaMatta, iniciou o trabalho de incentivar a transformação da letra da lei em exercício concreto e efetivo na Administração Pública. De novo, em nossa irreverência, esse trabalho da comissão foi recebido com muito ceticismo, com dúvidas sobre se era "apenas para inglês ver" ou se neste caso seria para "pegar", isto é, para valer. Registre-se que o trabalho da CEP contribuiu muito para que essa lei pudesse, de fato, valer.

Em 1o de fevereiro de 2007, na presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, a legislação anterior foi aperfeiçoada pelo Decreto No 6.029, proposta encaminhada pela então chefe da Casa Civil e futura presidenta da República, Dilma Rousseff. Através desse decreto foi instituída a Rede de Ética do Poder Executivo Federal e criada uma secretaria executiva nas comissões com a incumbência de dar efetividade ao cumprimento dos princípios éticos.

Registre-se que predominava, desde a influência inicial do antropólogo Roberto DaMatta, a compreensão de que os membros das Comissões de Ética do Sistema de Gestão, com sua cabeça localizada no Poder Executivo Federal, e das Comissões dos Órgãos Públicos deveriam gozar de independência em relação à subordinação hierárquica para que os valores éticos pudessem se tornar efetivos. Os membros de todas as comissões passaram a ter mandatos definidos de três anos, renováveis por apenas mais três. As pressões hierárquicas sempre existirão, mas a governança proposta contribuiu para fortalecer a independência na atuação das Comissões de Ética.

No BNDES, a gestão da ética foi formalizada em 26 de junho de 2002, com a Resolução 1.007 da Diretoria, que criou o Código de Ética Profissional dos Empregados do Sistema BNDES e a Comissão de Ética do Sistema BNDES – CET/BNDES.  Esse regulamento orientou o trabalho desenvolvido na gestão da ética através da promoção de ações de natureza educativa, da atualização e do aperfeiçoamento de suas normas e da apuração e aplicação das penas cabíveis nos casos de infrações éticas.

Em 23/09/2008, pela Resolução nº 1642/2008, a Diretoria aprovou o Regimento Interno da CET/BNDES, aperfeiçoando os procedimentos utilizados.

Sete anos depois de sua criação, o Código de Ética foi atualizado com a reflexão e incorporação da experiência acumulada, em processo aberto de consulta interna, e o novo Código obteve aprovação da Diretoria em 28 de abril de 2009. Em 19 de abril de 2016, a Diretoria, pela Resolução 2.982, com a continuidade e renovação da experiência vivenciada, aprovou o atualmente vigente Código de Ética do Sistema BNDES.

Quero destacar, em todo esse período, o título da apresentação ao Código que havia sido aprovado pela Diretoria, em 28 de abril de 2009, do então presidente do BNDES, Luciano Coutinho: "Só há desenvolvimento com ética". Esta frase refletiu e marcou profundamente minha experiência como profissional do BNDES.

A estruturação da gestão da ética, com seus eventuais equívocos, acertos e méritos, foi consequência da contribuição, direta ou indireta, de todos os empregados do BNDES.

Em relação ao trabalho vivenciado, enfatizo a realização de seminários em que foi possível compartilhar experiências e aperfeiçoar o aprendizado com profissionais especializados no conhecimento e na prática da ética.

O processo educativo foi continuado nas equipes que se sucederam na composição da CET/BNDES e mereceu atenção prioritária em suas atividades. A Comis-são deve se orgulhar por ser composta por empregados com diferentes visões de mundo e diversas experiências de vida pessoal e profissional.

Esse processo foi reforçado, com o apoio da Comissão de Ética Pública, na criação do Fórum Nacional de Gestão da Ética nas Empresas Estatais, que organizou anualmente seminários que aprofundaram o compartilhamento de experiências. A Comissão de Ética Pública também organizou seminários amplos para debater experiências de gestão da ética, nacionais e internacionais.

Essas atividades influenciaram as apurações formais, sob responsabilidade da Comissão Interna, de possíveis infrações éticas ocorridas no BNDES. Foi uma experiência pioneira, em que a cultura corporativa de nossa instituição foi posta à prova para que a CET/BNDES pudesse exercer com maturidade, equilíbrio e rigor sua atribuição. A depender da avaliação da gravidade da infração ética cometida, poderiam ser aplicadas sanções aos empregados do BNDES conforme previsto no Código de Ética. O princípio predominante foi o de valorizar o processo educativo e de aprendizado, orientado pelo respeito ao empregado e pela valorização da justiça, e associar a sanção aplicada à preservação da instituição pública BNDES, de sua cultura, missão, visão e valores. O BNDES seria fortalecido se seus empregados compreendessem a relevância do compromisso ético e se o aplicassem em suas atividades profissionais e pessoais.

O ambiente de compartilhamento de ideias no trabalho da CET/BNDES proporcionou o surgimento de uma frase que consubstanciou sua experiência no processo de apuração de infrações éticas: "Nem Torquemada, nem pizza". O senso de justiça não deveria ser pautado por uma ação inquisitorial, representada pelo trágico exemplo de intolerância de Juan de Torquemada, na idade média europeia, nem pelas práticas da cultura simbólica brasileira, onde as investigações sobre transgressões nunca gerariam punição aos responsáveis, e essa impunidade faria tudo "acabar em pizza". Nas penalidades aplicadas, a Comissão procuraria se pautar pelo rigor e pelo equilíbrio, e, nesse tom, a ética no BNDES sairia fortalecida.

No momento atual, estamos vivendo uma experiência que nos leva a refletir sobre o comportamento ético trazido à tona pela abertura de Procedimento Preliminar pela CET/BNDES para investigar possível descumprimento do Código de Ética pelo empregado Thiago Mitidieri, presidente da AFBNDES. Esse descumprimento teria ocorrido pelo fato de Thiago ser responsável pela utilização do Quadro de Avisos, franqueado pelo BNDES, para convocar os empregados a participar de evento político, no dia 28/04/2017, em protesto contra as reformas Trabalhista e da Previdência propostas pelo governo federal.

Registro meu desconforto em abordar essa questão por estar no exercício da 1a vice-presidência da AFBNDES e por já ter ocupado a presidência da CET/BNDES no período 2004/2009.

Por outro lado, entendo que não devo recusar essa oportunidade para aprofundar as discussões sobre questões éticas no BNDES. Considero que devemos conversar com equilíbrio, transparência e respeito às diversas opiniões dos empregados.

Em primeiro lugar, penso, junto com a integralidade da Diretoria da AFBNDES, que nosso presidente emitiu o Quadro de Avisos por estar no exercício do cargo. Não caberia considerar o descumprimento individual do Código de Ética.

Em segundo lugar, é uma oportunidade para conversarmos sobre a distinção de entendimento sobre política e política partidária. Essa última é vedada nos códigos de ética porque, embora um direito assegurado pela Constituição ao cidadão brasileiro, não deveria ser trazida para a esfera da atividade profissional em uma empresa pública.

Por ocasião das eleições gerais de 2016, a CET/BNDES recebeu orientações da então presidente do TSE, e atual presidente do STF, ministra Carmem Lúcia. A ministra foi muito clara nesta distinção. Deveríamos estimular e resguardar a participação política plural e partidária do cidadão brasileiro na sociedade, com cuidado para evitar que pudesse se imiscuir no espaço não apropriado de uma empresa pública.

A maturidade e a qualidade dos empregados do BNDES devem ser manifestadas pelo respeito à diversidade e para evitar a satanização e a criminalização da política.

A atuação de entidades representativas da sociedade civil, sindicatos, associações e outras, deve incorporar esse comportamento.

Eu mesmo, em várias oportunidades de conversas com os empregados do BNDES nos andares, e em evento no Sindicato dos Bancários, me manifestei pelo cuidado que devemos ter para preservar as entidades, a AFBNDES e o BNDES, evitando internalizar a política partidária, mas não a política. O contrário, o chamado aparelhamento partidário, só faria enfraquecer as entidades.

Não sou um alienado ou uma avestruz que coloca sua cabeça num buraco para evitar olhar o mundo à sua volta. Como cidadão brasileiro, me preocupo com o avanço recente da intolerância, em nossa sociedade e na política, e pelo desrespeito à convivência de pessoas com opiniões diferentes. Devemos dar nosso exemplo, no BNDES, para valorizar a convivência da diversidade e do contraditório de opiniões. Isto fortalece esta instituição porque ela poderá contar com a motivação, a inteligência, a capacidade e o compromisso contidos na diversidade.

Rendo minha homenagem e reconhecimento à contribuição de todos os colegas que trabalharam na história da gestão da ética no BNDES, uma atividade difícil e delicada, sem a qual não teríamos o legado de qualidade que alcançamos.

Para a continuidade, preservação e fortalecimento da Ética no BNDES gostaria de sugerir à CET/BNDES que organizasse um ou mais debates, trazendo cidadãos com diferentes opiniões para nos ajudar a refletir e entender a melhor forma ética de incentivar e assegurar a participação política do cidadão, e sobre os espaços que devem ser respeitados para o exercício da política partidária, sem ferir a legislação vigente em nosso país. Essa também é uma contribuição para o fortalecimento da democracia, a qual entendo ser a vontade majoritária da população brasileira.

Nós, empregados ativos ou aposentados, podemos dar esse exemplo de convivência começando por evitar a alimentação de eventual princípio de intolerância no BNDES.

 
 
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