Algumas controvérsias a respeito da MP 777
 

Arthur Koblitz
Vice-presidente da AFBNDES
 

Introdução

Para quem acompanhou as duas primeiras audiências públicas da Comissão Mista instalada pelo Congresso Nacional para analisar a Medida Provisória 777/2017, é realmente engraçado ouvir dos defensores da TLP que o que está em discussão não é o BNDES. As apresentações de representantes de órgãos do governo têm sido mais duras em relação ao Banco do que a de economistas convidados pelos defensores da MP. A minha visão sobre a qualidade do que vem sendo dito ficará clara no que segue.

Só os absolutamente desavisados deveriam ignorar que o que está em marcha é um projeto de gradual desmonte do BNDES. Como cansamos de alertar aos funcionários, o projeto ora em marcha foi desenhado há mais de dez anos. Não há inovações significativas, seja de argumentos, seja de propostas na atual MP em relação ao que propôs Persio Arida em junho de 2004. Apenas optou-se por um gradualismo. Não se fala em leilões do FAT ou em zerar a alíquota do PIS. Claro, por enquanto.

Após as duas primeiras audiências tivemos acesso finalmente a algumas respostas e argumentos ainda não apresentados pelos defensores da TLP. A seguir, revisa-se alguns desses argumentos.

Nenhum instrumento de política de desenvolvimento a menos!

Na audiência da última segunda-feira (24), chegou-se a argumentar que precisávamos ser menos resistentes a mudança porque o caminho que temos trilhado no Brasil não tem sido de desenvolvimento. A produtividade está estagnada etc. etc. etc. Por que então não examinar com mais carinho a proposta da TLP?

Em primeiro lugar, porque o que estamos presenciando ao longo das últimas três décadas é a adoção de reformas liberais sempre com promessas de que basta nos livramos do nosso passado institucional intervencionista para que o mercado e com ele os corretos incentivos nos guiem para o rumo da prosperidade. O BNDES é praticamente o último instrumento relevante de intervenção estatal para promoção do desenvolvimento que restou e agora dizem que é exatamente a existência do BNDES que está no caminho da reconciliação do país com o desenvolvimento. Do nosso ponto de vista, a TLP deve ser rechaçada exatamente porque ela significa mais um passo nessa história de desmonte.

Não temos compromisso com o atual arranjo FAT-TJLP. A questão é que a MP reduz o poder de influência do BNDES sem colocar nada no lugar. Seu significado é exatamente esse: esvaziar mais um instrumento de promoção do desenvolvimento no país.

A genialidade da MP 777

Segundo o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, a genialidade da MP 777 está no fato de o BNDES poder securitizar o projeto financiado e, com isso, renovar o seu funding (Valor Econômico, 11/07/2017). Um dos escândalos da MP é que seus principais méritos, do ponto de vista dos seus defensores menos técnicos – afinal de contas, quem compra a bobagem da história do aumento da eficácia da política monetária, além dos técnicos do Banco Central, da Fazenda e os economistas que os defendem –, dispensam sua existência. À pergunta: a MP é necessária para que o BNDES possa securitizar parte dos seus ativos creditícios? A única e simples resposta é NÃO. A qualquer momento o BNDES pode criar produtos à taxa de mercado e vender os ativos assim gerados. Não há nada na MP que torne isso possível. Se fizesse isso, algumas questões poderiam ser testadas para ver o quão genial é a proposta de securitização. Os financiamentos conseguiriam demanda? O mercado teria apetite por esses ativos? O BNDES teria realmente algum benefício com essas operações? Isso para não entrarmos na discussão se cabe a um banco de desenvolvimento vender ativos creditícios de apoio a setores estratégicos.

Volatilidade da TLP

Dois argumentos podem ser dados para mostrar que a nova taxa de juros será mais volátil. Em primeiro lugar, deve-se apreciar o histórico da TLP – se ela existisse no passado comparada com a TJLP. A taxa é bem mais alta e muito mais volátil. Os interessados em acompanhar o debate podem constatar que os defensores da MP nunca apresentam esse gráfico histórico. Em segundo lugar, o reconhecimento da volatilidade foi feito pela declaração do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de que "o governo teve o cuidado de estabelecer na MP 777 que a fixação da TLP será com base em uma média de três meses da NTN-B" (11/07/2017). Essa afirmação não corresponde aos fatos. Não há previsão na MP para uma média de três meses das NTN-B. O que mostra que o ministro desconhece o teor da medida. Além disso, tal proposta nunca foi apresentada pelos técnicos envolvidos na discussão. Feita no contexto do processo de "convencimento" do presidente do BNDES, a afirmação desnuda o contrário do que afirma: a falta de cuidado da equipe econômica.

Na sua apresentação, Armando Castelar contesta que a TLP seja mais volátil que a TJLP. Argumentou que uma vez contratado o financiamento, a TLP é fixa do ponto de vista real. O que Castelar não considera é que a volatilidade é uma questão também para quem está considerando tomar o crédito. É desse ponto de vista que falamos, assim como falou implicitamente o ministro Meirelles, de volatilidade da TLP.

Eficácia da política monetária

Como a audiência de segunda-feira confirmou, um dos principais argumentos em defesa da MP 777 é que haveria um aumento no poder ou eficácia da política monetária. Isso quer dizer que os efeitos das variações da taxa de juros se fariam sentir de forma mais efetiva sobre a taxa de inflação, com a implicação de que para combater a inflação o Banco Central poderia aumentar menos, do que costuma fazer, a taxa de juros. Ou seja, o nível da taxa de juros no Brasil poderia ser menor do que é hoje.

Por que a eficácia aumentaria com a TLP? Porque a TLP, ao contrário da TJLP, é sensível à Selic, a taxa de juros fixada pelo Banco Central. Uma questão importante também é apurar o quanto significativo seria o bloqueio que a TJLP causaria para a transmissão da influência da Selic sobre a economia. Os defensores da MP 777 frequentemente usam o fato de que o "crédito direcionado" é uma parcela muito significativa do total do estoque de crédito da economia. Por exemplo, na exposição de motivos da MP 777, encontramos:

"No sistema atual, parte relevante do estoque de crédito não é afetado pelas decisões de política monetária, que ocorrem no âmbito do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom). Assim, para que os efeitos do aumento da taxa Selic sejam sentidos no controle da inflação, é necessária uma elevação maior desta taxa, uma vez que parte do crédito não é afetada por essa decisão. Esse overshooting tem impacto no financiamento da dívida pública e nos empréstimos tomados pelas pessoas físicas e jurídicas ao longo de cada ciclo de alta dos juros".

Em resposta a essa posição, economistas e representantes da indústria contrários à MP 777 têm defendido que o que é relevante para avaliar o quanto a TJLP entupiria o mecanismo de transmissão da política monetária não é o estoque de crédito, mas o fluxo de novo crédito dirigido. O argumento é que o que importa são as decisões de consumo e investimento, ou demanda agregada, que são a cada momento influenciadas pela taxa de juros. Até a primeira audiência da Comissão da MP 777, realizada em Brasília no dia 12 de julho, os defensores da TLP evitaram o tema. Uma atitude sistemática da parte deles. Sabem que são maioria, que têm mais acesso de mídia e preferem ignorar obje-ções e argumentos ao que defendem. Em Brasília, entretanto, instados pelo relator, o deputado Betinho Gomes, tive-ram que responder ao tema. A resposta é desconcertante, pois mostra um desalinhamento com a exposição de motivos da MP. Segundo Tiago Berriel, do Banco Central:

"Do ponto de vista do poder da política monetária, o mais importante é influenciar as decisões dos agentes, as taxas esperadas, as taxas futuras… Nesse sentido é muito mais que só o fluxo… A política monetária influencia a decisão de tomar empréstimo e a decisão de não tomar também. Tem que influenciar as decisões de consumo e investimento de curto, médio e longo prazos. Hoje em dia a política monetária não afeta as decisões de investimento de médio e longo prazos. A questão não é meramente olhar a estatística de fluxo ou de estoque. A política monetária pode ter efeito via estoque…, mas isso não precisa ser trazido à discussão porque a TLP não vai afetar o estoque já desembolsado pelo BNDES".

 
BNDES: Desembolsos para Indústria Comércio e Serviços
 

A questão se resume ao seguinte: a Selic é mais alta do que deveria ser porque não influencia as decisões de investimento de médio e longo prazos, ou seja, o problema está em que o investimento não cai como deveria cair toda vez que a taxa de juros sobe. Essa é a questão da eficácia na visão dos defensores da MP. Eles deveriam deixar isso mais claro, mas se escondem nesses argumentos do tamanho do crédito direcionado. Mais um exemplo de transparência dos defensores da TLP. A questão é: o quão desejável é tornar o investimento mais sensível à taxa de juros? Principalmente quando vemos a quantidade de fatores exógenos, choques de preço por conta de fenômenos climáticos, crises internacionais etc., a que nossa economia está sujeita e o quanto isso leva a reações da taxa de juros numa estrutura de política monetária comprometida apenas com a estabilidade dos preços.

De fato, o que a TJLP permitiu ao longo dos anos foi proteger os investimentos dessa volatilidade para permitir ao país ao menos continuar caminhando. Inverte-se uma conexão causal clara – com uma taxa de curto prazo historicamente tão alta, não há mercado de longo prazo – por uma extremamente duvidosa, de que essa taxa de curto prazo é muito alta porque a taxa de longo é administrada.

O que é ignorado nessa discussão é que se o ponto é coordenar a taxa de longo prazo com a de curto, o atual arranjo institucional permite que a TJLP seja fixada no nível desejado pelas autoridades econômicas. Talvez ainda mais importante é discutir se o canal de transmissão da política monetária no Brasil, particularmente numa situação de recessão como a atual, é mesmo via demanda agregada. Vários analistas de mercado e acadêmicos acreditam que a taxa de juros do Banco Central afeta a taxa de inflação por meio de seu efeito sobre a taxa de câmbio. Se esse for o principal mecanismo de transmissão, o BNDES não joga nenhum papel na redução da eficácia da política mone-tária e a TLP é uma futilidade do ponto de vista de combate à inflação e, ao mesmo tempo, um desastre do ponto de vis-ta do desenvolvimento.

MPME

Na primeira audiência em Brasília, no dia 12 de julho, com grande alarde foi mostrado pela Fazenda um "gráfico de pizza" que causou impacto no momento da sua exibição e, posteriormente, alguma repercussão pelas mídias sociais. Nesse gráfico, como uma evidência de que o BNDES apoia empresas escolhidas, ao contrário do que faz o mercado, mostrava-se a distribuição dos financiamentos do BNDES e do Bradesco decompostos por porte de empresas, grandes, médias, pequenas e microempresas. Enquanto a carteira do Bradesco contava com participação de 36% de grandes empresas, a do BNDES contava com 80%. Os dados são do Banco Central de março de 2017.

Os dados pareciam confirmar não só o comentário de difamação das redes sociais de que o BNDES apoia "os amigos do rei", argumento que tem sido reproduzido até por figuras outrora intelectualmente respeitáveis, mas também reforçava a linha de argumentação principal da apresentação do Ministério da Fazenda de que o principal propósito da MP 777 é defender os trabalhadores. Uma maior participação do setor privado no mercado de crédito levaria a uma "democratização" do crédito no Brasil.

Democratizar o crédito só poderia ter algum significado se os bancos privados conseguissem fazer operações semelhantes às do BNDES, alcançando empresas de menor porte. Caso contrário deveríamos colocar na comparação outras "instituições". Não há dúvida que agiotas emprestam para indivíduos de menor nível de renda que os bancos comerciais. Seria esse o modelo de negócio que deveríamos emular? A primeira críti-ca ao "gráfico de pizza" é que ele, ao comparar a carteira do BNDES e do Bradesco, não está levando em conta que está comparando laranja com maçãs. Por exemplo, quanto o Bradesco apoia de infraestrutura e exportação?

Como essa decomposição por atividades não é possível com os dados de estoque do Banco Central, examinamos o que indicam os desembolsos do BNDES ao longo do tempo. Excluindo as operações de exportação e infraestrutura que pela característica estrutural da atividade tendem a ser dominadas quase que exclusivamente por grandes empresas, os desembolsos do BNDES de 2011 a 2016 mostram uma divisão entre grandes e as demais que está na casa dos 50%.

Uma outra diferença crucial que o famigerado "gráfico de pizza" não considera é que a função por excelência do BNDES e a dos bancos comerciais são diferentes. Apoiar capital de giro seria função dos bancos comerciais. Os dados de estoque indicam que os bancos comerciais praticamente não apoiam empréstimos de mais de 5 anos de maturidade, enquanto que metade dos empréstimos do BNDES são de pelo menos 5 anos. De fato, considerando os demais bancos públicos, pode-se constatar que apenas 11% dos financiamentos para empréstimos de mais de 5 anos são feitos por bancos privados nacionais e internacionais. E isso não é tudo. Como veremos, essa estatística ainda superestima o papel desses bancos nesse setor.

A segunda crítica que se deve fazer é que as operações no Banco Central estão registradas de forma que os financiamentos que os bancos comerciais fazem de repasse do BNDES estão contabilizados como seus e não como do BNDES. Ou seja, o polêmico "gráfico de pizza" só cobre as operações diretas do BNDES e inclui nas carteiras dos bancos comerciais as operações indiretas. Logo os 11% de financiamento a empréstimos de mais de 5 anos dos bancos privados são em grande medida parte do apoio realizado com funding do BNDES. Como todo mundo que trabalha no BNDES sabe, e como todo mundo que está na Fazenda deveria saber, as operações indiretas são cerca de metade do valor das operações do BNDES e, com destaque para o Finame, tendem a atender empresas de menor porte. Esse é um outro fator que explica o número mágico de 80%.

Assim o gráfico mostra o BNDES com uma carteira de 333 bilhões, a do Bradesco de 169 bi. Os repasses do BNDES correspondem a 262,8 bilhões. Desses recursos, para o Bradesco foram repassa-dos 32 bilhões (ou seja, 16% da carteira do Bradesco); para o Itaú, 27,6 bilhões.

Mas se os analistas do Ministério da Fazenda não deram desconto para as atividades especiais do BNDES, isso não quer dizer que não tenham sido generosos com a análise da carteira do Bradesco. A terceira crítica que pode ser feita ao gráfico é que da carteira do Bradesco foram excluídos os créditos a pessoas jurídicas no exterior! Para quem são esses créditos? Dificilmente para MPMEs. E esses empréstimos a PJs no exterior são 33% da carteira do Bradesco. A correta apresentação do gráfico da carteira do Bradesco indicaria que 59% do seu crédito é destinado a grandes empresas. Um número que poderia ser ainda maior se excluirmos os 32 bilhões de repasses do BNDES. Assumindo o caso limite de que os 32 bilhões dos repasses foram para MPMEs, teríamos o seguinte cenário para a carteira do Bradesco completa: dois terços para grandes empresas e um terço para MPMEs.

Note-se ainda que esses números não levam em conta o apoio na forma de garantias do BNDES via FGI, em geral voltado para bancos privados…

O apoio direto a MPME é o resultado de inovações do BNDES. Isso foi possível porque vários produtos foram desenvolvidos no Banco, como o Cartão BNDES. O apoio do BNDES direto para MPMEs é uma resposta a uma demanda pública, mas ele está longe de esgotar a importância da atuação do Banco para MPMEs. Grandes empresas são mercados para MPMEs. Para dar um exemplo clássico, a industrialização brasileira sofreu enorme impulso, nos anos 50, apoiando multinacionais, montadoras de automóveis, mas esse apoio foi condicionado à obrigação dessas multinacionais de comprarem produtos de empresas nacionais de autopeças, à época muito incipientes.

Há muito o que se discutir sobre o apoio do BNDES nesse setor e essa discussão é bem-vinda e necessária. O problema é que, como mostra a discussão sobre a MP 777, ela está interditada pelo domínio de um debate ideológico de baixo nível que sugere que quem apoia a MPME, de verdade, é o sistema privado financeiro e não as agências públicas financeiras. Coisa de gente que não sabe o que está falando, ou está disposta a falar qualquer coisa para atacar o BNDES e fazer com que a MP 777 seja aprovada.
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(*) Publicado na edição nº 1257, em 28/7/2017.

 
 
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