A "incorporação de função"
e a reforma trabalhista
 

Felipe Miranda
Diretor Jurídico (1) da AFBNDES
 

Nas relações jurídicas de trabalho existem situações em que o empregado é chamado a ocupar na empresa uma função diversa do seu cargo efetivo, recebendo uma gratificação por essa nova atribuição, ciente de que poderá ser dispensado da função gratificada a qualquer tempo, revertendo ao cargo efetivo.

A CLT prevê essa possibilidade nos artigos 450 e 468, assegurando ao empregado a volta ao cargo anterior e a contagem do tempo de serviço e garantindo ao empregador o direito de nomear e de dispensar da função a qualquer tempo, sendo certo que em geral o empregado, ao reverter, perde a gratificação, reduzindo-se o patamar remuneratório.

Entretanto, se o empregado contava à época da perda da função com 10 anos ou mais percebendo a gratificação e se a dispensa se deu sem justo motivo, a jurisprudência passou a reconhecer que haveria uma espécie de "ajuste tácito" entre as partes e aplicava diretamente o chamado princípio da estabilidade financeira para reconhecer ao trabalhador a manutenção daquele patamar remuneratório.

Confira-se o teor da Súmula 372/2005 de lavra do Tribunal Superior do Trabalho, que unificou a vetusta Orientação Jurisprudencial 45/1996:

GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO. SUPRESSÃO OU REDUÇÃO.

LIMITES (conversão das Orientações Jurisrudenciais n° 45 e 303 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I - Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira. (ex-OJ nº 45 da SBDI-1 - inserida em 25.11.1996)

II - omissis

A Súmula citada representa entendimento do TST, estando solidamente fundamentada nos princípios da irredutibilidade salarial (art. 7º VI, da Constituição), da proibição das alterações contratuais lesivas (CLT, art. 468) e da natureza salarial da gratificação de função (art. 457, § 1º).

A despeito disso não nos passa desapercebido que é uma construção que não advém diretamente da lei, lacuna, porém, passível de preenchimento judicial consoante o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Convém recordar as hipóteses de o trabalhador perceber gratificação de função por 10 anos ou mais, sendo, porém, várias as funções e distintos os valores pagos.

Estaria ele ao desabrigo?

Não. A Súmula nº 372 do TST não exige a percepção de gratificação de função por período ininterrupto de, pelo menos, 10 anos para efeito de estabilidade econômica. Da mesma forma, a referida regra sumulada não estabelece que a gratificação de função tenha sido percebida pelo empregado na mesma função, nem que o valor pago pelas diferentes funções seja o mesmo. Em casos assim, por equidade, para que prevaleça o justo e o razoável, deve ser incorporado o valor médio das gratificações pagas nos 10 anos.

Como exemplo, o entendimento já adotado há mais de uma década pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, que afirma, mesmo sendo distintas gratificações durante o decênio, ser devida a incorporação pela média dos últimos 10 anos, conforme Súmula 12/2004:

Nº 12/2004

GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO EXERCIDAS POR MAIS DE 10 (DEZ) ANOS. APLICAÇÃO DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº 45, DA SBDI1, DO COL. TST. FORMA DE CÁLCULO.

O princípio da estabilidade financeira do empregado merece todo zelo da ordem jurídica, tendo em vista que transcende a pessoa do trabalhador individualmente considerado, para assegurar a estabilidade da família, ao preservar o padrão de vida do grupo familiar, que se estruturou contando com os ganhos regulares auferidos por 10 anos ou mais.

Porém, com o advento da reforma trabalhista tocada no governo do ex-advogado constitucionalista Michel Temer, o PL 6.787/2016 altera o artigo 468 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), incluindo um segundo parágrafo que permite ao empregador a alteração unilateral do cargo ocupado pelo trabalhador, rever-tendo-o a função anterior, sem a necessidade da manutenção de gratificações e adicionais no salário.

Art. 468. ……………

1º Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança.

2º A alteração de que trata o § 1º deste artigo, com ou sem justo motivo, não assegura ao empregado o direito à manutenção do pagamento da gratificação correspondente, que não será incorporada, independentemente do tempo de exercício da respectiva função. (NR)

Ou seja: suprime a lacuna da lei que era preenchida judicialmente para vedar-lhe completamente.

Quid Juris?

Algumas digressões exsurgem.

A primeira situação que salta aos olhos é que a modificação é inconstitucional, haja vista que o princípio da estabilidade financeira nada mais é que um desdobramento do princípio da irredutibilidade salarial (art. 7º VI, da Constituição).

Nesse passo, não se trataria de mero preenchimento de lacuna legislativa, mas sim de alteração perversa consistindo num retrocesso legal. No futuro, se aprovado tal "reforma", os Tribunais dirão sobre sua sustentabilidade à luz desse princípio.

Outra é a situação de quem não postulou judicialmente ou mesmo aqueles empregados como os que labutam na Caixa Econômica Federal, Dataprev ou Banco do Brasil, cujas empresas prevejam em seu regulamento o direito a requerimento administrativo de uma situação de incorporação.

Caso não seja requerido o direito (judicial ou administrativamente) antes da reforma, poderá ser este reconhecido?

Entendemos que sim, face a proteção constitucional ao chamado direito adquirido.

A análise é simples. As leis são feitas com a intenção de gerar estabilidade na sociedade. Esse instituto diz basicamente que os direitos já adquiridos por uma pessoa não podem ser prejudicados por novas leis.

Sendo assim, se alguém tem 11 anos numa função e pós reforma essa função lhe é retirada, certamente este poderá vindicar seu direito com base na lei, pois já havia este se incorporado a seu patrimônio.

Agora, se, por exemplo, um regulamento de uma empresa diga que além dos requisitos da Súmula ele tenha que preencher para tanto requisitos de idade (mais de 50 anos), ter no mínimo passado por quatro funções diversas, ser sabatinado por um colegiado que poderá aprovar seu pleito e coisas afins, é certo que aqui não há direito adquirido relativo à concessão da benesse pelo empregador, apenas mera expectativa de direito.

Isso, contudo, não importa dizer que este não terá efetivo sucesso em demanda judicial, posto que a Súmula 372 não impõe nada nesse sentido, e seu direito fatalmente será reconhecido pela via judicial.

Então, a depender de como redigido o citado regulamento, há direito adquirido, assim como, por exemplo, uma reforma previdenciária não pode modificar a aposentadoria de quem já estava aposentado ou de quem já tinha o direito de se aposentar pelas normas antigas quando a reforma foi aprovada.

Mesmo raciocínio se aplica a uma eventual postulação na seara judicial ainda que a Súmula 372 seja inutilizada pela vindoura lei.

 
 
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