“A este sucedeu Jair, de
Galaad, que foi juiz em
Israel durante vinte e dois
anos”.
“Tinha trinta filhos que
montavam em trinta
jumentinhos e possuíam
trinta cidades que se chamam
ainda hoje Havanvot-Jair,
situadas em Galaad”.
“Jair morreu e foi sepultado
em ‘C’me on, man’. (Juízes,
10)”
Domingo. Almoço na casa da
quase nonagenária mãe, TV no
SBT passando um programa de
auditório com elementos de
reality. Consulto @ggreenwald
e descubro que minutos atrás
o zaralho rolava em
Brasília. Mudo a tv para a
GloboNews. Aguento perto de
meia hora e jogo para a CNN.
Nesse breve período, já eram
terroristas.
Marx fala da repetição da
tragédia enquanto farsa.
Linear demais isso. Na terra
da tragédia rodrigueana, há
apenas a hipocrisia
pequeno-burguesa fazendo um
trágico mambembe, vilanias
canastronas. Pensemos que a
farsa aqui vira a comédia de
erros, e, neste sentido,
celebremos a comédia que
remanesce desde que o que
sobrou dos autos medievais
aqui chegou.
6 de janeiro foi uma Farsa.
8 de janeiro foi uma
Micareta. Terrorismo,
insurreição, golpe: tudo
isto são outras coisas,
nenhuma delas de fato
presente nesses eventos, por
mais que as pessoas que os
façam sintam a realidade
histérica de suas encenações
em seu coração. A forma de
um glossário me parece
adequada a tratar do
assunto.
TERRORISMO: terrorismo visa
causar emoções – medo,
raiva, revolta, ação
impensada. O Puma que
explodiu no Riocentro foi um
atentado terrorista
fracassado conduzido por um
par de membros da ativa do
Exército brasileiro. Naquele
momento a ditadura já
transicionava para um regime
democrático que formalmente
só viria em 90, e setores
insatisfeitos dentro deste
aparato burocrático, que fez
ocupação de boquinhas
durante a finada
administração de Jair, viram
uma bomba explodir no colo
viril de dois membros do
Exército. Mas se você quiser
um caso recente de
terrorismo, de típico
terrorismo de direita, pense
no assassinato de Marielle
Franco. Nenhum aviso,
nenhuma razão aparente,
ninguém assumiu. Marielle
era alguém que incorporava
em si todas a placas a serem
rasgadas pelo bolsonarismo:
favelada, negra, mulher,
lésbica, esquerdista. O
objetivo foi causar algum
tipo de desordem à moda
daquela que Antifa/BLM
fizeram no EUA em 20? De
fazer com que favelados,
negros, mulheres, LGBTQIA+
e/ou esquerdistas ocupassem
violentamente a rua,
afrontando uma intervenção
do Exército comandada por
Braga Neto, recentemente
candidato a vice de
Bolsonaro? Talvez, mas se
foi isso nossos inimigos não
entendem o quão humanos e
tranquilos são os cariocas
ante a uma barbaridade que,
no fundo, toque o coração de
todos.
Algumas centenas de
abobalhados tirando selfies
em patrimônio público sendo
depredado de forma não
sistemática não é
terrorismo. É um tipo
criminalizável de babaquice.
Destruição sistemática de
infraestrutura pública
– como linhas de
transmissão de energia – por
grupos localizados, isso é
terrorismo. Já há leis o
bastante para isso.
Cabe aos ministérios da
Justiça e da Defesa
entenderem que os meios de
força ali presentes devem
obediência a seus comandos e
prontidão em serem usados. E
devem ser usados sem dó nem
piedade.
FARSA: os mesmos órgãos de
imprensa que venderam a você
as armas de destruição em
massa no Iraque, as armas
químicas na Síria, a
manipulação russa das
eleições americanas, a Lava
Jato, além de outros
sucessos menores em termos
de “E a Oceania sempre
esteve em guerra com a
Lestásia, não é mesmo?”,
vendem a grande insurreição
de 6 de janeiro de 2021. São
os mesmos órgãos que não
estão vendendo os twitter
files ou não venderam a Vaza
Jato. Ou se o fizeram, o
fizeram na forma de
limited hangout, aquele
tipo de revelação que é como
um ator pelado em horário
nobre, onde o essencial fica
invisível. Tipo Panama
Papers, onde muito pouco se
soube dos serviços que a
Mossak-Fonseca andou
prestando nestas terras. E
quanto tempo levou a ficha
do Imortal Merval para cair
em relação ao seu herói
Sérgio Moro?
Então cara leitora que caiu
no conto da Insurreição:
você sabe que só houve uma
morte violenta na invasão de
6 de janeiro – uma veterana
das forças armadas
covardemente assassinada com
um tiro pelas costas dado
por um policial do
Congresso? Você já se
perguntou como se conseguiu
abrir uma porta extremamente
pesada e blindada,
impossível de ser aberta por
fora? Ou por que a
presidente da Câmara, uma
deputada octogenária que de
inexperiente não tem nada,
decidiu que forças de
segurança adicionais não
eram necessárias em torno do
Congresso, sabendo das
manifestações que haveria?
Você já ouviu falar em Ray
Epps? Procure. Mas não o
faça nas versões americanas
da Folha ou do 247.
Há uma série de perguntas em
cima desse cuidadoso
descuido que resultou no 6
de janeiro que serão
respondidas nessa próxima
Câmara americana. Em
conjunto com os twitter
files, a sensação de ter
sido trapaceado pelas
agências de três letras e
pela grande imprensa será
imensa. A menos, claro, que
as pessoas sejam
histericamente insufladas em
suas emoções com eventos
como a micareta de 8 de
janeiro. Neste sentido, ela
realimenta a ilusão
americana da grande
conspiração de direita
mundial. Até os otários da
direita americana acreditam
nisso.
MICARETA: é um carnaval fora
de época, fora do momento
histórico onde o carnaval de
verdade ocorre, fora de seu
lugar geográfico verdadeiro.
Os meios materiais e
simbólicos são
transplantados para outro
lugar, onde as pessoas
“vivem” essa experiência
carnavalesca sem ser, de
fato, carnaval. Mas é como
se fosse.
Você não participou de 68,
não pintou a cara em 92? Sem
problema, jovem! Você não
foi um indignado, você não
ocupou o parque Zuccotti ou
a praça Syntagma, sem
problema! Temos uma
manifestação difusa, de
dezenas, centenas de
milhares de pessoas na
Cinelândia. Pra quê? Pra
nada! como no proverbial
poema sobre o gaúcho
galopando. Claro, essas
manifestações ajudam a criar
o clima para o golpe que
derrubou Dilma (observação
amigos que gostam de
governos democratas: Goulart
foi derrubado num governo
democrata, Dilma foi
derrubada num governo
democrata. Governos
democratas podem ser bons
para os americanos, mas em
termos de política externa
definitivamente não são
nossos amigos).
A maior de nossas micaretas
foi provavelmente a campanha
das Diretas, quando as
pessoas foram às ruas sob o
pretexto de se obter
eleições diretas para
presidente e tudo que de lá
trouxemos foi uma camiseta
com “diretas já” e um belo
acordo de elites costurado
em torno de Tancredo Neves
para garantir que a ditadura
seria transicionada de forma
adiabática, sem o capeta na
forma de Leonel Brizola numa
eleição direta. Mas ao pegar
o metrô com aquela massa
cheirosa em 84 você já
sentia que havia algo de
estranho naquela multidão,
que aquele era um evento
político performático e não
transformativo.
Um outro exemplo de
performático: durante a
parte violenta das
manifestações de 13, quando
o choque curiosamente ficou
parado esperando o comando
do governador Cabral para
agir contra uns black blocs
que tacavam fogo na ALERJ,
fiz um contorno pela Praça
XV para chegar do Banco às
barcas, quase nove da noite.
Na praça XV vazia, três
figuras: um cara com um
moicano espetado e duas
moças trajadas em preto e
rendados rasgados, como numa
sessão de fotos da Sex da
falecida Lady Vivianne
Westwood. Naquele tempo,
tomando-lhes emprestado os
nomes, os gritos de guerra e
as roupagens.
8 de janeiro, dia em que se
celebram os aniversários de
nascimento de Elvis Presley
e David Bowie, a Esplanada
dos Ministérios é tomada por
essa micareta amarela. Além
de não ser um lugar
apropriado para isso, pois
não há como de fato se
estabelecer segurança,
sequer as forças policiais
fizeram um faz de conta
decente de que estariam ali
para fazer alguma coisa. 8
de janeiro era também uma
semana após a posse do Lula.
Sequer protesto num dia
formalmente relevante, como
no 6 de janeiro americano.
Apenas um bando de
abobalhados cometendo seus
crimes, registrando-os em
redes sociais, na ilusão
taxista de que o Estado não
irá atrás deles.
Essa ilusão precisa ser
curada. Não há como ter
avanço civilizacional sem
que esses setores de pequena
burguesia (e reacionários de
burocracia pública) conheçam
a experiência de diálogo com
o Choque, esta instância de
expressão da voz do poder
público que favelados
fechando estradas, torcidas
organizadas, professores em
processo de reinvindicação e
outras categorias de
proletariado e lumpen
conhecem tão bem. Sim, o
pessoal do Choque pode ver
essa inflamação coxinha como
composta por parentes e
irmãos. Mas nada que a
transferência de município e
o processo disciplinar
contra recalcitrantes não
resolva.
Mas o fato é: essas
multidões de otários não são
terroristas. São só pessoas
que desconhecem que há leis,
e que elas também se aplicam
a eles.
HIERARQUIA: hierarquia é uma
palavra-chave que as pessoas
esquecem nessa história
toda. Forças armadas,
polícias militares, serviço
público em geral, são
instituições baseadas na
hierarquia. Agir à margem
desta não é quebra da
hierarquia, mas quebra da
instituição. A reforma que
Castelo fez em 65 visou – e
com sucesso – acabar com as
quarteladas que perturbaram
a vida política brasileira
na década anterior. Há
normas claras no regimento
dessas instituições.
O que faltou até o momento
em que escrevo? Para começar
uma nota contundente do
comando do Exército (e de
cada uma das outras forças)
dizendo que as manifestações
são uma violação das
tradições de respeito à lei
e à ordem do Exército
brasileiro, que a
participação de militares da
ativa e da reserva será alvo
de sérias punições, e que a
presença de elementos da
família militar é reprovável
e impacta negativamente para
a instituição como um todo e
seus membros individuais.
O fato é que qualquer acordo
feito para se colocar um
ex-presidente do TCU
comandando a Defesa parece
comprometido no momento. Há
que o presidente Lula, cujo
grupo de transição não
incluiu um grupo no tema
Defesa, entender que ele é o
chefe. Que ele nomeia,
demite e promove quem bem
entender. E isto qualquer um
que fez ECEME sabe muito
bem. Os civis podem não
saber, mas qualquer um,
reformado ou na ativa, tendo
sido das milhares de
boquinhas ou ficado na sua
nas forças, qualquer um
deles estudou isso.
O mesmo vale para os
governadores e suas PMs.
Neste sentido, as pragas do
Egito que cairão sobre
Ibaneis serão uma forma
didática de um poder maior
relembrar aos governadores
que responderão pelos atos
feitos pelos seus
subordinados no dia do
juízo. Me lembro de Padre
António Vieira usando deste
domínio de fato em algum
momento dos seus Sermões
(que faz mais de quatro
décadas que não visito).
JUÍZES: depois de Sansão,
cujo poder vinha dos
cabelos, temos Xandão,
capítulo novo do sétimo
livro, cujo poder talvez
cesse por ridículo se uma
fuchsiana peruca lhe for
imposta à cabeça. Concordo
com o Greenwald que o que
acontece no Brasil hoje está
ao arrepio da lei. Mas
estamos assim desde que Lula
foi preso, desde que o
processo sobre o triplex no
Guarujá foi adiante. Os
órgãos de imprensa que
silenciaram sobre isso, os
políticos que fizeram
campanha em cima dessa
palhaçada, prestaram um
grande desserviço ao país.
Pois se peças como O
Mensalão e seu domínio de
fato foram peças ficcionais
razoavelmente encenadas,
Curitiba foi uma atrocidade.
E Curitiba é o que produziu
idiotas como os que
depredaram nossos palácios,
que acamparam à porta das
instalações militares
esperando a intervenção
superior, como o motorista
do Uber que me trouxe de
volta domingo falando das
pessoas que são soltas pela
Justiça.
Quando o gênio de Xandão
será posto de volta à
garrafa? Quando aquelas
pessoas que até alguns anos
atrás citavam Agamben vão se
dar conta que há aí um
imenso Rodes, um colosso de
soberania não democrática
violando normas processuais,
direitos legais? A
colegialidade que levou às
arbitrariedades cometidas
contra o presidente Lula foi
no mesmo Judiciário, em
variantes do mesmo discurso
“civilizacional”, de defesa
da democracia contra a
barbárie. E com o apoio de
setores de nossa mídia, e
com o apoio de outros que
saíram abraçando sarados
jurídicos do lavajatismo
para anos depois vir pedir
unidade de esquerda em torno
de si.
É esse mesmo conjunto de
farsantes que vai dizer que
foi terrorismo em 6 de
janeiro, que foi terrorismo
em 8 de janeiro, e que nosso
governo deve se alinhar com
um regime Biden que conduz o
Ocidente para uma debacle
geopolítica e militar como
não se conhece há séculos. É
o mesmo conjunto que vai
pedir leis que virão
convenientemente a ser
usadas contra sindicalistas,
esquerdistas, movimentos
sociais ou qualquer outro
grupo que se organize em
oposição ao establishment.
Em silêncio, o bestializado
Jair espera na Flórida o
momento em que fugirá,
heroico, para um lugar onde
não possa ser extraditado.
Quem sabe a Itália de Meloni,
quem sabe algum canto das
Arábias. Esqueçamos esse
inútil e seus filhos, que só
servem para causar emoções
fortes: sem anistia! Deve se
centrar naqueles que de fato
conduziram atos
administrativos lesivos. Que
fomentaram (ou se omitiram)
na quebra de hierarquia.
Deve ser um processo
meticuloso, sem catarses.
Feito ponto a ponto a
sistema de pontos. |
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