Precisamos Falar Sobre o Que Vem
 

Paulo Moreira Franco
Economista do BNDES
 

"whenever you find someone doing something in the name of economic efficiency that seems completely economically irrational, one had best start by asking, as the ancient romans did, "Qui bono?" – "who benefits" – and how."

(Bulshit Jobs – David Graeber)

Seria relativamente fácil fazer um texto irônico, pernóstico e exibicionista sobre o peculiar Oriente-Ocidente do anúncio/apologia da reorganização. Por exemplo, perguntar "e no confucionismo, não vai nada?", seguindo-se de uma discussão de Fukuyama, tanto do volume 1 de The Origins of Political Order, suas três componentes da ordem política, e de como as orientais China e Índia são radicalmente distintas, acrescentando o contraste entre China e Japão que ele fizera antes no Trust. E quem sabe aí emendar com a história política do Ocidente, a presença contínua de partidos de base religiosa e de movimentos sociais, tanto conservadores quanto progressistas, fundados na fé. Talvez radicalizar, tomando emprestado um pouco que aprendi com umas amigas recentemente, sacar do contraste entre aletheia e veritas, de advaita, observar as bolinhas no símbolo de yin-yang. Tudo isso emoldurado com uma frase do Kawasaki sobre o acesso a oxigênio. Terá ficado de herança uma coleção de biscoitos da sorte do Da Costa com um aviso de "abra em caso de emergência"?

Ou estaria apenas sendo gratuitamente indelicado com um amigo, com duas bem-sucedidas décadas de trabalho de executivo do Banco, com um experiente tomador de decisões formado em engenharia operando fora de sua zona de conforto quando forçado a escrever uma curta peça entre a prestação de contas para acalmar ânimos e a bulshitagem motivacional corporativa, tratando de uma pauta que ele mesmo reconhece como aquém do que julga deveria ser feito? Como ler um texto que, se numa mão parece ser um esforço público sincero de medida transparência, noutra mão mascara o que é um golpe de morte no que resta de unidade no corpo funcional do Banco. Atos de magia são assim, atente à mão que não importa enquanto à outra se entrega o feito.

Entre os atos de magia, a mulher serrada é construir um conjunto de premissas (aparentemente) óbvias – e, portanto, incontestáveis – sobre o caminho do mundo. E uma delas, que estava presente, por exemplo, nas mudanças cá efetuadas no último biênio do governo FHC, é a premissa de que agora teremos um ambiente de concorrência pela frente. Para poder enfrentar isso necessário será se mudar as estruturas. É pro bem do país, pro bem do Banco, pro nosso bem. Mas se a coletivos é bem, a quem ela é benefício?

Façamos uma pequena digressão teórica. Começo com uma pequena história acontecida aqui no Banco. Um evento com perto de metade da Área presente, uma discussão sobre promoção. Um colega, administrador, saca de uma oposição entre o (insolúvel) entendimento meritocrático do problema tal como usualmente formulado e um método (e seu devido entendimento) que atendia a princípios de justiça distributiva, numa linha rawlsiana (posteriormente, chamamos a heurística de Mérito Coletivo – obviamente não foi adotada). Foi um momento mágico, um momento em que vi coisas que eu conhecia fazia mais de três décadas, coisas que aprendi com Sérgio Abranches, ali, brilhantemente refletidas em meio a uma aparentemente banal (e geralmente infrutífera) discussão corporativa. Por vezes você pensa a utilização de ferramentas no campo restrito para o qual elas foram desenvolvidas; e ali, um uso óbvio (mas que me escapara) de conceitos que funcionam para espaços políticos mais amplos estava sendo empregado para este espaço político restrito. E muito bem empregado, de forma muito prática.

Em bom português, os princípios de Rawls são:

"1º. Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.

2ºB. Princípio da oportunidade justa: As desigualdades económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade de oportunidades.

2ºA. Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto se a existência de desigualdades económicas e sociais gerar o maior benefício para os menos favorecidos".

O que me traz a uma obra obscura, uma ideia soterrada pelo tempo, mas que na época fascinava o Sérgio. Em Tyranny and Legitimacy (1979), James Fishkin, que uma década depois se tornou o formulador da ideia de deliberative polling, propunha um critério de não-tirania para as decisões públicas. Na sua formulação (se não me falha a memória), uma decisão não-tirânica é aquela que não provoca privações severas no life plan de uma pessoa. Lembrem-se, este era um campo à época contaminado pelo convívio com economistas da escola de escolha racional (que, entre outras coisas, desandou em Carrasco). E com pessoas tentando ser originais em relação a esse colosso da filosofia política que foi Rawls.

Supondo que as medidas que venham a ser efetuadas concretamente impliquem em um deslocamento/redução de cargos das áreas-meio em favor das áreas-operacionais, não é preciso muito esforço para entender que nem a condição de não-tirania, nem o princípio da oportunidade justa, estarão sendo observados. Quanto a este, pela forma como a distribuição de profissionais no Banco se dá sabe-se lá desde quando, a distribuição das diferentes profissões entre as áreas-operacionais e as áreas-meio não é simétrica. Pela própria natureza dos trabalhos que são realizados na Área Financeira, na Área Administrativa e de Recursos Humanos, nas atividades de contabilidade e controladoria, a presença de contadores e administradores de empresa será proporcionalmente maior que no restante do Banco nessas áreas-meio. É também política atual que os analistas de sistemas estão "condenados" a estar na ATI (ou seja, sequer o princípio da liberdade igual vale para eles). A mudança, por tanto, tem um viés. Por acaso esse viés melhora a possibilidade de acesso de todos? Suspeito que não. Mas a redução de cargos, combinada a isto, certamente reduz a expectativa futura das pessoas virem a ocupar esses cargos na carreira. Supondo que essa situação se perpetue, isso se caracteriza como uma decisão tirânica.

A questão é se essa medida vai produzir um ganho que justifique a insatisfação e a apatia que ela produzirá nas áreas negativamente afetadas em suas oportunidades individuais pela reestruturação. Sim, porque espero que o impacto disso tenha sido de alguma forma contabilizado pelos propositores dessa racionalização administrativa. Mesmo sabendo que há pressões de Brasília por medidas performáticas (e inócuas), o Ricardo foi bastante honesto em não colocar a (praticamente irrelevante) redução direta de custos como uma das metas/resultados dessa reforma. Portanto, algum outro ganho concreto isso deve ter que não seja meramente solucionável, por exemplo, pela simples mudança de atribuições de cargos, mudanças de governança envolvendo a quantidade de tinta em determinadas canetas e carimbos, sem que isso envolvesse extinções e deslocamentos significativos e abruptos.

Que falte gente em certas áreas operacionais hoje não é de se surpreender. Há um pânico com os abusos cometidos pelo Sistema U, pânico que nada melhora com membros da atual Diretoria dizendo que o Sistema U é nosso amigo. Não, não é. As pessoas querem ter a garantia de que a Diretoria está disposta a se sacrificar por elas – não apenas disposta a negociar. Isto não é claro, isto não tem solução no curto prazo – mas vem um governo novo em menos de seis meses.

Que faltem operações não se deve à falta de pessoas nas áreas operacionais, nem à falta de ideias originais. Estamos no poço de uma recessão de balanço; no abraço de morte do event horizon de uma política recessiva, contracionista, imposta por mecanismos de austeridade auto-inflingidos; no limiar de uma nova era a nível global em que, ao que parece, políticas no âmbito do estado nacional voltam a ter relevância. E isto também é questão a ser resolvida por quem vier – não será agora.

Pra que, então? Ou será, pra quem, então?

Medidas dessa natureza num momento em que se sabe que muito provavelmente as coisas irão mudar de novo ano que vem costumam ser uma tentativa de proteger/consolidar posições de poder. Mais questões de política interna do que questões de política de desenvolvimento. Quais? Não dá pra se afirmar a priori. Na linha do Princípio do Conservadorismo Contábil, citando o (candidato a) presidente Jair Bolsonaro: devemos discutir quem, "mas com dados técnicos do BNDES para você não falar besteira".

E não pense você, cara leitora, que cá faço a defesa de um processo participativo, transparente, seja lá qual a palavra de ordem ou a ideologia do momento. "Manda quem pode, obedece quem tem juízo" é uma daquelas máximas de fácil entendimento, coisa que qualquer pessoa numa engrenagem hierárquica entende. É o discurso que soa falso do "é pro seu bem" que incomoda, que desmotiva. É direito (e papel) desta Diretoria fazer as mudanças que bem entende (dentro dos limites da lei, obviamente). Mas isso não deve, em hipótese alguma, ser um obstáculo para as mudanças na próxima administração.

O que não exime o que está sendo proposto de seu impacto. Isso cobra um preço. No caso, o que estará sendo pago é a solidariedade interna que lotou o auditório quando pessoas foram arbitrariamente conduzidas pela polícia. E posso dizer ARBITRARIAMENTE agora com toda a tranquilidade: o STF baniu a prática. Mas socos na mesa não irão restaurar a solidariedade que será perdida com medidas desiguais, indelicadas, apressadas, pelo que, como o coelho puxado da cartola, no fundo parece um golpe.

 
 
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