20 de maio de 2008

(2) Síntese do Projeto Cidade Cidadã

Rio de Janeiro, BNDES, 9/05/08

Ezequiel Souza do Nascimento
Secretário de Políticas Públicas de Emprego do Ministério do Trabalho

José Carlos de Assis
Assessor da Presidência do BNDES

Senhoras e Senhores,

Fiquei incumbido de apresentar neste Simpósio as linhas gerais do projeto Cidade Cidadã, que acreditamos possa vir a ser implementado no Brasil em momento oportuno. Não é um programa de Governo. É o esboço preliminar de um projeto em elaboração que, quando concluído, o Governo possa avaliar e, dependendo dessa avaliação e de sua aprovação, venha a tornar-se um programa efetivo, depois de submetido ao Congresso. Representantes de vários ministérios e da sociedade civil, líderes sindicais e comunitários, têm participado das discussões iniciais em torno dele. O que apresento é uma síntese dessas discussões. 

Como temos visto neste Simpósio, Programas de Emprego Garantido (PEG), associados a Programas de Trabalho Aplicado (PTA), vêm sendo adotados com sucesso em alguns países, como Argentina, Índia e África do Sul. Temos ciência de que outros países da América do Sul com altas taxas de desemprego e de subemprego buscam o mesmo caminho para superar seus problemas sociais mais agudos. Foi isso que nos inspirou inicialmente, além de estudos teóricos como o de L. Randall Wray, do Levy Institute dos EUA. Devo dizer que, na medida em que ampliamos o universo de discussões em torno do tema, dentro e fora do Governo, foi praticamente unânime o estímulo recebido. Não houve sequer uma objeção, apenas sugestões positivas, como o de dirigentes do BNDES e do próprio Vice Presidente José Alencar. 

Para conduzir o encaminhamento de nossos estudos, de uma forma operacional, constituímos um núcleo de representantes ministeriais mais diretamente relacionados com o projeto, a saber: o Ministério do Trabalho, por se tratar de emprego; o Ministério das Cidades, pela dimensão das obras e serviços a serem realizados nas periferias sociais metropolitanas; o Ministério do Desenvolvimento Social, pela razão óbvia de que estamos tratando fundamentalmente de desenvolvimento social; e o IPEA e a Assessoria da Presidência do BNDES, pela contribuição que podem dar no campo da formulação. Esta síntese reflete as conclusões preliminares desse grupo. 

São três os problemas sociais que temos em foco: o alto índice de desemprego e de subemprego; as condições de habitabilidade e de infra-estrutura social nas periferias sociais metropolitanas; e a questão da criminalidade e da segurança pública. É gigantesco o esforço que tem sido feito pelo Governo Lula para enfrentar esses problemas em escala nacional. A principal arma contra eles, além dos programas de assistência direta, como o vitorioso Bolsa Família, é o crescimento econômico mais acelerado - o que felizmente temos tido nos últimos anos, e já com efeitos visíveis nos indicadores sociais. Entretanto, são problemas sociais, alguns deles seculares, de difícil solução num curto espaço de tempo, mesmo com alto crescimento econômico, que em geral não favorece os trabalhadores desempregados não qualificados. 

Entendemos que não há como atacar esses problemas individual ou setorialmente com verdadeira eficácia, pois estão entrelaçados numa cadeia de causalidade recorrente: o alto nível de desemprego e de subemprego repercute nas condições de habitabilidade nas periferias sociais, e ambos repercutem na violência e insegurança urbana. Insisto que não há como resolver esses problemas de uma vez, a curto prazo, mas nos convencemos, inclusive pela experiência internacional, de que será possível, se forem atacados globalmente, reduzi-los num prazo razoável a uma dimensão manejável na qual possam ser atacados pelas políticas governamentais específicas comuns. 

O segundo foco é territorial: os três problemas enfocados acima estão concentrados nas periferias sociais metropolitanas. Claro que existem também fora das Regiões Metropolitanas, mas aqui eles são mais agudos. Além disso, por um princípio de realismo fiscal, sabemos que não podemos propor um projeto dessa envergadura para que seja iniciado simultaneamente em todo o País, em todas as cidades. Não haveria sequer capacidade operacional para isso. Em conseqüência, sugerimos que se inicie pelas sete maiores Regiões Metropolitanas, sobre as quais temos maior conhecimento sobre as condições de subemprego e habitabilidade: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife, onde o IBGE pesquisa regularmente as condições do mercado de trabalho; e o Distrito Federal (Brasília), pesquisado pelo DIEESE. Posteriormente, seria estendido às demais Regiões Metropolitanas, cidades grandes e interior, sem o que haveria forte pressão migratória para as primeiras. 

O PEG não pode ser concebido como emprego público. Se o fosse, iria interferir no mercado de trabalho privado de forma distorcida. Seu objetivo é garantir trabalho digno a desempregados (e, eventualmente, subempregados) por um período limitado de tempo, ao mesmo tempo em que oferece aos trabalhadores a ele vinculados uma oportunidade de qualificação profissional, de forma a que tenham melhores condições de disputar o mercado de trabalho privado. Nas nossas discussões, houve algum consenso em torno da sugestão de que o período de vinculação individual no programa seria de sete meses, eventualmente renovável no ano seguinte, com salário mínimo mensal integral, e um leque de direitos trabalhistas e previdenciários a ser melhor discutido. 

O PTA deve envolver profundamente as comunidades locais na definição dos serviços e obras a serem realizados, tanto as de interesse coletivo (creches, escolas, postos de saúde, delegacias, vias de acesso), quanto as de interesse individual (casas e barracos). A elegibilidade para o programa teria que obedecer ao princípio da territorialidade, isto é, teriam acesso a ele os trabalhadores desempregados (em geral desqualificados) que vivem nas próprias periferias sociais, e que estão disponíveis e dispostos a trabalhar nos serviços e obras indicados nessas periferias – embora alguma consideração deva ser dada ao caso de desempregados que morem fora das periferias e que ali desejam trabalhar. 

A estrutura de governança do projeto, para usar um conceito privado, é uma das chaves para seu sucesso. Acreditamos que deverá haver duas instâncias: um ente público específico de planejamento, acompanhamento, controle, informação e regulação geral, em nível federal, formado por executivos indicados por todos os Ministérios envolvidos direta e indiretamente no projeto (11); e um ente público executivo, para cada Região Metropolitana, com um Conselho de Representantes formado por representantes de cada um dos municípios da Região, cabendo a este Conselho político indicar, de comum acordo, uma Diretoria Executiva rigorosamente profissional. 

Achamos necessário o envolvimento da sociedade civil, intelectuais, empresários, organizações não governamentais, desde o momento da formulação. Uma participação relevante poderia advir das faculdades de urbanismo e arquitetura, inclusive num esquema em que estudantes do último ano, como bolsistas, sob orientação acadêmica e profissional de seus professores, possam participar do processo de levantamento cadastral e definição de obras e construções urbanísticas nas comunidades periféricas. 

Vamos agora a algumas considerações quantitativas. Nas seis Regiões Metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, numa população economicamente ativa total de 23 milhões 276 mil, o número de desocupados absolutos, em março último, elevava-se a 1 milhão 993 mil. Destes, 58,2% eram mulheres. E 45,7% do total não tinham o ensino médio concluído. Pode-se estimar, numa análise preliminar, que a maioria desses desocupados absolutos more nas periferias sociais, e se candidatariam ao programa. Mas é claro que nem todos os 54,3% que têm o ensino médio concluído estarão dispostos a trabalhar nos serviços e obras a serem indicados, já que muitos deles se enquadram como trabalhadores qualificados desempregados. 

Podem eventualmente se candidatar ao programa, porém, pelos menos alguns milhares de trabalhadores classificados como marginalmente ligados à PEA (825 mil), desalentados (13 mil) e integrantes do imenso contingente dos que ganham menos de um salário mínimo (4 milhões 252 mil) ou que trabalham em jornada inferior a oito horas (696 mil). Claro, aqui estamos num terreno de conjecturas. Um efeito indireto esperado do programa é uma pressão, a partir da base, para a formalização do mercado de trabalho privado e alinhamento de sua remuneração ao salário mínimo como forma de não perder os trabalhadores para o PEG. 

De qualquer forma, esses números e essa realidade terão de ser levados em conta na definição final do programa e, em especial, nos critérios de elegibilidade. Além disso, um aspecto essencial é o do gênero, e outro da idade. Já se viu que as mulheres são maioria entre os desocupados. Na verdade, grande parte delas está ocupada, mas não remunerada. São as que cuidam dos filhos, dos idosos, dos doentes, dos deficientes, dos serviços domésticos, das compras. É necessário formalizar, por algum meio, esses serviços, socializando-os (em creches e casas de idosos, por exemplo), ao mesmo tempo em que se liberam as mulheres para o mercado de trabalho formal. 

Entre os jovens, a idade crítica é de 15 a 17 anos. São quase 8% da população desocupada nas seis Regiões. O contingente logo acima, de 18 a 24 anos, representa 39% dos desocupados. No primeiro caso, talvez seja necessário que o programa preveja trabalho parcial (4 horas diárias), liberando tempo para a educação formal e a qualificação profissional, articulado a programas já desenvolvidos pelo Ministério do Trabalho. No segundo caso, pode-se sugerir uma jornada de 6 horas de trabalho, liberando 2 horas para qualificação, com participação do setor privado. São idéias preliminares, que devem ser melhor definidas numa interação com o Ministério da Educação e outros entes públicos  e privados ligados ao setor, inclusive os Serviços de Aprendizagem da Indústria e do Comércio (4 S). 

(Os números do DIEESE para o Distrito Federal apresentam configuração similar ao que se expôs acima. Para uma população economicamente ativa de 1 milhão 312 mil, existiam em dezembro último 216 mil desempregados, abertos e ocultos, dos quais 13,2% homens e 19,8% mulheres. Também neste caso nem todos os desempregados se candidatariam ao PEG, mas temos, de qualquer forma, uma ordem de grandeza do programa, essencial para uma estimativa de necessidades de financiamento.) 

O projeto deve ter o cuidado de não se superpor, mas complementar programas governamentais em execução, em termos operativos e em termos de custos. Em alguns casos, serão os outros programas que o complementarão. O principal é o Bolsa Família: o PEG seria um caminho intermediário para que pelo menos parte do contingente do Bolsa Família evoluísse progressivamente para o mercado de trabalho formal – o que é o objetivo último do próprio PEG, na medida em que ele próprio não deve pretender ser um programa permanente, mas uma ponte para o mercado formal de trabalho. Outra complementaridade óbvia é com o PAC, em execução nas periferias metropolitanas.

Um programa extremamente bem sucedido, do Ministério da Saúde, o dos Agentes Comunitários de Saúde, pode ser adequadamente associado ao PEG. Há importantes programas em andamento do Ministério da Educação, da Secretaria da Juventude e do próprio Ministério do Trabalho voltado para jovens, o que pode ser articulado também ao PEG. E, talvez, a articulação mais importante seja com o Ministério da Justiça, na medida em que um dos objetivos centrais do PEG/PTA é reduzir as oportunidades de marginalização de jovens e de insegurança nas nossas metrópoles – embora deva ficar claro que este não seja um programa direcionado diretamente contra a criminalidade, ou contra o tráfico de drogas, áreas da Polícia, embora pretenda reduzir o espaço de recrutamento de jovens pela criminalidade e pelo tráfico. 

É preciso dizer, finalmente, que não ousaríamos sequer esboçar um projeto desse tipo não fosse o fato de termos um Governo profundamente empenhado em enfrentar a crise social brasileira. O Presidente Lula se elegeu prometendo acabar com a fome no Brasil e reduzir o desemprego. Cumpriu a primeira parte de sua promessa, com o Bolsa Família, e está em processo de cumprir a segunda. O PEG/PTA, se vier a ser aprovado, será um passo significativo, talvez o maior na história de nossas políticas públicas, no sentido de trazer para níveis toleráveis a taxa de desemprego e de subemprego, melhorar as condições de habitabilidade em nossas periferias sociais e contribuir decisivamente para diminuir a insegurança em nossas metrópoles. 

Obrigado
(1) Política de pleno emprego como prerrogativa da cidadania e base da estabilidade da democracia ampliada