Senhoras e Senhores,
Fiquei incumbido de apresentar neste
Simpósio as linhas gerais do projeto
Cidade Cidadã, que acreditamos possa vir
a ser implementado no Brasil em momento
oportuno. Não é um programa de Governo.
É o esboço preliminar de um projeto em
elaboração que, quando concluído, o
Governo possa avaliar e, dependendo dessa
avaliação e de sua aprovação, venha a
tornar-se um programa efetivo, depois de
submetido ao Congresso. Representantes de
vários ministérios e da sociedade civil,
líderes sindicais e comunitários, têm
participado das discussões iniciais em
torno dele. O que apresento é uma síntese
dessas discussões.
Como temos visto neste Simpósio,
Programas de Emprego Garantido (PEG),
associados a Programas de Trabalho
Aplicado (PTA), vêm sendo adotados com
sucesso em alguns países, como Argentina,
Índia e África do Sul. Temos ciência de
que outros países da América do Sul com
altas taxas de desemprego e de subemprego
buscam o mesmo caminho para superar seus
problemas sociais mais agudos. Foi isso
que nos inspirou inicialmente, além de
estudos teóricos como o de L. Randall
Wray, do Levy Institute dos EUA. Devo
dizer que, na medida em que ampliamos o
universo de discussões em torno do tema,
dentro e fora do Governo, foi praticamente
unânime o estímulo recebido. Não houve
sequer uma objeção, apenas sugestões
positivas, como o de dirigentes do BNDES e
do próprio Vice Presidente José Alencar.
Para conduzir o encaminhamento de
nossos estudos, de uma forma operacional,
constituímos um núcleo de representantes
ministeriais mais diretamente relacionados
com o projeto, a saber: o Ministério do
Trabalho, por se tratar de emprego; o
Ministério das Cidades, pela dimensão
das obras e serviços a serem realizados
nas periferias sociais metropolitanas; o
Ministério do Desenvolvimento Social,
pela razão óbvia de que estamos tratando
fundamentalmente de desenvolvimento
social; e o IPEA e a Assessoria da Presidência
do BNDES, pela contribuição que podem
dar no campo da formulação. Esta síntese
reflete as conclusões preliminares desse
grupo.
São três os problemas sociais que
temos em foco: o alto índice de
desemprego e de subemprego; as condições
de habitabilidade e de infra-estrutura
social nas periferias sociais
metropolitanas; e a questão da
criminalidade e da segurança pública. É
gigantesco o esforço que tem sido feito
pelo Governo Lula para enfrentar esses
problemas em escala nacional. A principal
arma contra eles, além dos programas de
assistência direta, como o vitorioso
Bolsa Família, é o crescimento econômico
mais acelerado - o que felizmente temos
tido nos últimos anos, e já com efeitos
visíveis nos indicadores sociais.
Entretanto, são problemas sociais, alguns
deles seculares, de difícil solução num
curto espaço de tempo, mesmo com alto
crescimento econômico, que em geral não
favorece os trabalhadores desempregados não
qualificados.
Entendemos que não há como atacar
esses problemas individual ou
setorialmente com verdadeira eficácia,
pois estão entrelaçados numa cadeia de
causalidade recorrente: o alto nível de
desemprego e de subemprego repercute nas
condições de habitabilidade nas
periferias sociais, e ambos repercutem na
violência e insegurança urbana. Insisto
que não há como resolver esses problemas
de uma vez, a curto prazo, mas nos
convencemos, inclusive pela experiência
internacional, de que será possível, se
forem atacados globalmente, reduzi-los num
prazo razoável a uma dimensão manejável
na qual possam ser atacados pelas políticas
governamentais específicas comuns.
O segundo foco é territorial: os três
problemas enfocados acima estão
concentrados nas periferias sociais
metropolitanas. Claro que existem também
fora das Regiões Metropolitanas, mas aqui
eles são mais agudos. Além disso, por um
princípio de realismo fiscal, sabemos que
não podemos propor um projeto dessa
envergadura para que seja iniciado
simultaneamente em todo o País, em todas
as cidades. Não haveria sequer capacidade
operacional para isso. Em conseqüência,
sugerimos que se inicie pelas sete maiores
Regiões Metropolitanas, sobre as quais
temos maior conhecimento sobre as condições
de subemprego e habitabilidade: São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Salvador e Recife, onde o
IBGE pesquisa regularmente as condições
do mercado de trabalho; e o Distrito
Federal (Brasília), pesquisado pelo
DIEESE. Posteriormente, seria estendido às
demais Regiões Metropolitanas, cidades
grandes e interior, sem o que haveria
forte pressão migratória para as
primeiras.
O PEG não pode ser concebido como
emprego público. Se o fosse, iria
interferir no mercado de trabalho privado
de forma distorcida. Seu objetivo é
garantir trabalho digno a desempregados
(e, eventualmente, subempregados) por um
período limitado de tempo, ao mesmo tempo
em que oferece aos trabalhadores a ele
vinculados uma oportunidade de qualificação
profissional, de forma a que tenham
melhores condições de disputar o mercado
de trabalho privado. Nas nossas discussões,
houve algum consenso em torno da sugestão
de que o período de vinculação
individual no programa seria de sete
meses, eventualmente renovável no ano
seguinte, com salário mínimo mensal
integral, e um leque de direitos
trabalhistas e previdenciários a ser
melhor discutido.
O PTA deve envolver profundamente as
comunidades locais na definição dos
serviços e obras a serem realizados,
tanto as de interesse coletivo (creches,
escolas, postos de saúde, delegacias,
vias de acesso), quanto as de interesse
individual (casas e barracos). A
elegibilidade para o programa teria que
obedecer ao princípio da
territorialidade, isto é, teriam acesso a
ele os trabalhadores desempregados (em
geral desqualificados) que vivem nas próprias
periferias sociais, e que estão disponíveis
e dispostos a trabalhar nos serviços e
obras indicados nessas periferias –
embora alguma consideração deva ser dada
ao caso de desempregados que morem fora
das periferias e que ali desejam
trabalhar.
A estrutura de governança do projeto,
para usar um conceito privado, é uma das
chaves para seu sucesso. Acreditamos que
deverá haver duas instâncias: um ente público
específico de planejamento,
acompanhamento, controle, informação e
regulação geral, em nível federal,
formado por executivos indicados por todos
os Ministérios envolvidos direta e
indiretamente no projeto (11); e um ente público
executivo, para cada Região
Metropolitana, com um Conselho de
Representantes formado por representantes
de cada um dos municípios da Região,
cabendo a este Conselho político indicar,
de comum acordo, uma Diretoria Executiva
rigorosamente profissional.
Achamos necessário o envolvimento da
sociedade civil, intelectuais, empresários,
organizações não governamentais, desde
o momento da formulação. Uma participação
relevante poderia advir das faculdades de
urbanismo e arquitetura, inclusive num
esquema em que estudantes do último ano,
como bolsistas, sob orientação acadêmica
e profissional de seus professores, possam
participar do processo de levantamento
cadastral e definição de obras e construções
urbanísticas nas comunidades periféricas.
Vamos agora a algumas considerações
quantitativas. Nas seis Regiões
Metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, numa
população economicamente ativa total de
23 milhões 276 mil, o número de
desocupados absolutos, em março último,
elevava-se a 1 milhão 993 mil. Destes,
58,2% eram mulheres. E 45,7% do total não
tinham o ensino médio concluído. Pode-se
estimar, numa análise preliminar, que a
maioria desses desocupados absolutos more
nas periferias sociais, e se candidatariam
ao programa. Mas é claro que nem todos os
54,3% que têm o ensino médio concluído
estarão dispostos a trabalhar nos serviços
e obras a serem indicados, já que muitos
deles se enquadram como trabalhadores
qualificados desempregados.
Podem eventualmente se candidatar ao
programa, porém, pelos menos alguns
milhares de trabalhadores classificados
como marginalmente ligados à PEA (825
mil), desalentados (13 mil) e integrantes
do imenso contingente dos que ganham menos
de um salário mínimo (4 milhões 252
mil) ou que trabalham em jornada inferior
a oito horas (696 mil). Claro, aqui
estamos num terreno de conjecturas. Um
efeito indireto esperado do programa é
uma pressão, a partir da base, para a
formalização do mercado de trabalho
privado e alinhamento de sua remuneração
ao salário mínimo como forma de não
perder os trabalhadores para o PEG.
De qualquer forma, esses números e
essa realidade terão de ser levados em
conta na definição final do programa e,
em especial, nos critérios de
elegibilidade. Além disso, um aspecto
essencial é o do gênero, e outro da
idade. Já se viu que as mulheres são
maioria entre os desocupados. Na verdade,
grande parte delas está ocupada, mas não
remunerada. São as que cuidam dos filhos,
dos idosos, dos doentes, dos deficientes,
dos serviços domésticos, das compras. É
necessário formalizar, por algum meio,
esses serviços, socializando-os (em
creches e casas de idosos, por exemplo),
ao mesmo tempo em que se liberam as
mulheres para o mercado de trabalho
formal.
Entre os jovens, a idade crítica é de
15 a 17 anos. São quase 8% da população
desocupada nas seis Regiões. O
contingente logo acima, de 18 a 24 anos,
representa 39% dos desocupados. No
primeiro caso, talvez seja necessário que
o programa preveja trabalho parcial (4
horas diárias), liberando tempo para a
educação formal e a qualificação
profissional, articulado a programas já
desenvolvidos pelo Ministério do
Trabalho. No segundo caso, pode-se sugerir
uma jornada de 6 horas de trabalho,
liberando 2 horas para qualificação, com
participação do setor privado. São idéias
preliminares, que devem ser melhor
definidas numa interação com o Ministério
da Educação e outros entes públicos
e privados ligados ao setor, inclusive os
Serviços de Aprendizagem da Indústria e
do Comércio (4 S).
(Os números do DIEESE para o Distrito
Federal apresentam configuração similar
ao que se expôs acima. Para uma população
economicamente ativa de 1 milhão 312 mil,
existiam em dezembro último 216 mil
desempregados, abertos e ocultos, dos
quais 13,2% homens e 19,8% mulheres. Também
neste caso nem todos os desempregados se
candidatariam ao PEG, mas temos, de
qualquer forma, uma ordem de grandeza do
programa, essencial para uma estimativa de
necessidades de financiamento.)
O projeto deve ter o cuidado de não se
superpor, mas complementar programas
governamentais em execução, em termos
operativos e em termos de custos. Em
alguns casos, serão os outros programas
que o complementarão. O principal é o
Bolsa Família: o PEG seria um caminho
intermediário para que pelo menos parte
do contingente do Bolsa Família evoluísse
progressivamente para o mercado de
trabalho formal – o que é o objetivo último
do próprio PEG, na medida em que ele próprio
não deve pretender ser um programa
permanente, mas uma ponte para o mercado
formal de trabalho. Outra
complementaridade óbvia é com o PAC, em
execução nas periferias metropolitanas.
Um programa extremamente bem sucedido,
do Ministério da Saúde, o dos Agentes
Comunitários de Saúde, pode ser
adequadamente associado ao PEG. Há
importantes programas em andamento do
Ministério da Educação, da Secretaria
da Juventude e do próprio Ministério do
Trabalho voltado para jovens, o que pode
ser articulado também ao PEG. E, talvez,
a articulação mais importante seja com o
Ministério da Justiça, na medida em que
um dos objetivos centrais do PEG/PTA é
reduzir as oportunidades de marginalização
de jovens e de insegurança nas nossas
metrópoles – embora deva ficar claro
que este não seja um programa direcionado
diretamente contra a criminalidade, ou
contra o tráfico de drogas, áreas da Polícia,
embora pretenda reduzir o espaço de
recrutamento de jovens pela criminalidade
e pelo tráfico.
É preciso dizer, finalmente, que não
ousaríamos sequer esboçar um projeto
desse tipo não fosse o fato de termos um
Governo profundamente empenhado em
enfrentar a crise social brasileira. O
Presidente Lula se elegeu prometendo
acabar com a fome no Brasil e reduzir o
desemprego. Cumpriu a primeira parte de
sua promessa, com o Bolsa Família, e está
em processo de cumprir a segunda. O PEG/PTA,
se vier a ser aprovado, será um passo
significativo, talvez o maior na história
de nossas políticas públicas, no sentido
de trazer para níveis toleráveis a taxa
de desemprego e de subemprego, melhorar as
condições de habitabilidade em nossas
periferias sociais e contribuir
decisivamente para diminuir a insegurança
em nossas metrópoles.
Obrigado
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