A questão do alto nível de desemprego
se tornou central no debate econômico a
partir de Keynes, o maior economista do Século
XX, durante a Grande Depressão dos anos
30. Voltou à baila neste século, a
partir da constatação de que a agenda
neoliberal das três últimas décadas, de
privatização e de liberalização
financeira, em muitos países –
inclusive no nosso, assim como em quase
toda a América Latina - não resolveu, e
provavelmente agravou, o problema do
desemprego.
Contudo, a questão do alto desemprego
transcende a economia profissional e entra
profundamente no terreno político. Não
reclama apenas uma agenda de política
econômica para ser enfrentada. Reflete,
antes disso, escolhas que estão no nível
da economia política. Mais: diz respeito,
profundamente, ao conteúdo da própria
democracia. Nesse sentido, e tendo em
vista as condições contemporâneas do
Brasil e da América Latina, a questão do
desemprego evoca a filosofia política do
grande filósofo social alemão Johann
Fichte, na virada do século XVIII para o
século XIX.
Fichte se perguntava, já naquela época,
como era possível estabilidade democrática
numa sociedade ancorada no princípio da
propriedade privada, se se concedia, ou
era conquistado, o direito de cidadania
também dos não proprietários. É que,
desde a primeira Convenção da Revolução
Francesa, o direito à propriedade privada
se ergueu como um anteparo de proteção
do indivíduo diante do poder do Estado.
Por razões ainda mais óbvias, o direito
à propriedade privada foi o pilar sobre o
qual se construiu o sistema capitalista.
Contudo, que direito tinha aquele que não
tinha propriedade privada diante daquele
que tinha?
Numa situação de cidadania limitada,
como aconteceu entre os gregos, era
perfeitamente possível conciliar
democracia e propriedade privada. Aliás,
“demo” era a palavra grega para o lote
básico de propriedade da terra, desde Sólon.
A Revolução americana, nos seus primórdios,
era também uma democracia de proprietários.
No entanto, a história do século XIX e
das primeiras décadas do século XX foi a
história da ampliação dos direitos de
cidadania, sintetizada esta no poder
eleitoral de escolha dos governantes. Os não
proprietários começaram a votar em
massa. E começaram a exigir direitos. Não
por acaso, foi um século e quase meio de
instabilidade política, pelo confronto
entre a pressão crescente das massas e a
resistências das classes dominantes
conservadoras.
De fato, a contradição entre
democracia capitalista de cidadania
ampliada, antecipada por Fichte, e a
realidade social de imensos contingentes
de não proprietários dispostos a fazer
valer seus direitos, esteve por trás de
todos os grandes movimentos políticos
daquele período. A solução original de
Marx para ela foi separar o conceito geral
de propriedade privada do conceito específico
de propriedade dos meios de produção,
postulando a coletivização ou estatização
destes últimos. A sociedade imaginada
seria uma democracia política de não
proprietários, em forma perfeitamente
igualitária.
Entretanto, a experiência do
socialismo real, como a conhecemos,
liquidou com a democracia política. É
verdade que sua simples existência na
história contribuiu para a percepção,
nas democracias capitalistas, da
possibilidade de uma solução concreta
para a contradição mencionada entre
propriedade privada e democracia de
cidadania ampliada. O não proprietário
é o que tem como fonte de sobrevivência
apenas a força de trabalho remunerada. Os
ciclos capitalistas criavam situações de
alto nível de desemprego, levando milhões
de trabalhadores à virtual indigência.
Qual a saída?
A saída genial formalizada por Keynes
– embora não inventada por ele, mas
pelos formuladores do programa New Deal
contra a Grande Depressão nos Estados
Unidos - foi a de regular o ciclo
capitalista, mediante uma firme intervenção
do Estado no estímulo à demanda efetiva,
pelo recurso a grandes déficits públicos
produtivos. Isso conciliava propriedade
privada, democracia e pleno emprego. E foi
a fórmula que, aplicada principalmente
nos Estados Unidos pelo New Deal, diante
da Grande Depressão, e estendida à
Europa Ocidental nos vinte e cinco anos
gloriosos do pós-guerra, produziu o mais
elevado estágio de civilização tecnológica
e de desenvolvimento social que
conhecemos.
O que houve então para que o
keynesianismo, essa agenda de economia política
absolutamente vitoriosa no Ocidente e no
Japão, viesse a ser contestada a ponto de
ser relegada como anacronismo nas décadas
triunfantes do neoliberalismo? A meu juízo,
a razão é simples: o keynesianismo, do
ponto de vista social, foi vítima de seu
próprio sucesso. A sociedade afluente
norte-americana, européia e japonesa,
produto de políticas keynesianas, perdeu
o medo do desemprego e adquiriu o gosto do
rentismo planetário. Não foi uma questão
de ideologia. Foi o resultado de uma
realidade sócio-econômica. Os ricos e
emergentes, cada vez mais numerosos,
passaram a cuidar dos próprios
interesses, indiferentes à parcela,
considerada pequena, da sociedade exposta
às crises de desemprego e de subemprego.
No quarto de século de ouro do pós-guerra,
não houve, nos Estados Unidos, na Europa
Ocidental ou no Japão, uma única situação
de desemprego generalizado. Ao contrário,
houve enriquecimento contínuo das classes
médias, que aos poucos se tornavam hegemônicas
no quadro eleitoral. Proprietários de
riqueza líquida, esses afluentes passaram
a temer, especialmente, a instabilidade
monetária, sobretudo depois que a inflação
norte-americana levou à ruptura dos
acordos de Bretton Woods, com a conseqüente
flutuação das moedas, fonte principal da
instabilidade.
Não vou repetir uma história bem
conhecida, mas às vezes nos escapa o quão
incômodo é para um proprietário de
riqueza líquida a flutuação de moedas,
empurrada por diferenciais de taxas de
inflação entre os países. Os anos 70
foram o exemplo conspícuo de tal
instabilidade. Na Europa Ocidental, o
resultado dela foi a formação de um
grande consenso político, apoiado no
poder eleitoral sobretudo dos afluentes,
pelo aprofundamento do Mercado Comum, pela
formação da União Européia e,
sobretudo, pela criação da moeda única,
o euro, que eliminaria pela raiz as causas
da instabilidade monetária.
É justamente aqui que se encontra a gênese
do neoliberalismo, ou da reemergência do
liberalismo, como ideologia e prática
vitoriosas dos anos 80 para cá. É que a
União Européia não é um Estado, mas
uma união de Estados. Sua moeda,
diferente da moeda cartal analisada por
Keynes, não tem uma vinculação fiscal:
é produto exclusivo de um acordo monetário,
uma mônoda. Para ancorá-la em algum
lugar, que não seja o poder emissor de um
Estado único, imaginaram um esquema
formal que amarra rigidamente as políticas
fiscais dos Estados membros, na direção
exclusiva da contração da economia, o
Tratado de Maastricht.
Não é surpresa que a Europa do euro
esteja estagnada, pois as “saudáveis”
políticas fiscal e monetária do bloco não
lhe dão muito oxigênio para o
crescimento. Contudo, isso não significa
que os afluentes europeus, maioria no
quadro eleitoral, estejam insatisfeitos. São
investidores no mundo com uma moeda forte.
Claro que há um alto nível de desemprego
pelos padrões históricos. Entretanto, a
despeito da pregação neoliberal, seus
sistemas de proteção social ainda
funcionam muito bem. Não há contradição
aguda entre cidadãos e proprietários. A
maior evidência disso é que há alternância
de poder partidário, embora mantendo-se a
economia política básica e a política
econômica básicas.
E nós da América Latina, nós do
Brasil? Nós importamos a ideologia e as
práticas neoliberais, mas não seu
sistema social de remota inspiração
keynesiana. Não há dúvida que somos uma
democracia de cidadania ampliada, onde
analfabetos e até menores de 16 anos
votam. Sim, porque temos liberdade de
expressão, escolhemos livremente nossos
candidatos nas eleições regulares, temos
alternância partidária do poder, e a
manipulação de mídia a que estamos
submetidos não é diferente de qualquer
outra democracia no mundo. Entretanto, a
política macroeconômica neoliberal que
temos praticado produziu as maiores taxas
de desemprego e de subemprego de que temos
notícia, embora ligeiramente cadentes nos
dois últimos anos, sem que tenhamos um
eficiente sistema de proteção social de
suas vítimas.
Aqui, estamos no limite de uma crise
social que pode levar a situações de
alta instabilidade democrática. Ainda não
temos, depois do fracasso do socialismo
real, uma vertente ideológica ou partidária
que capitalize a insatisfação subjacente
no quadro social, mas temos elementos de
degeneração do quadro social que
produzem um sentimento geral de insegurança
que, sobretudo nas metrópoles, significa
uma restrição objetiva às nossas
liberdades e à nossa democracia. Em
especial a partir de uma visão
prospectiva, não há um de nós que veja
com tranqüilidade o destino de centenas
de milhares, milhões de jovens até, sem
qualquer perspectiva de um desenvolvimento
saudável no horizonte imediato e de médio
prazo.
A meu ver, estamos sob o imperativo de
uma política macroeconômica tipicamente
keynesiana para conciliar o direito de
propriedade, fonte de tranqüilidade dos
ricos, com o direito a uma ocupação
remunerada, única fonte de tranqüilidade
dos não proprietários. Numa democracia
de cidadania ampliada, como a nossa, o
alto nível de desemprego nos empurra
inexoravelmente para o conflito político,
que de alguma forma está mascarado por
razões peculiares que não examinarei
aqui. Diga-se de passagem que
frequentemente não há relação entre as
causas subjacentes e o modo específico de
um conflito político. Todos os
oportunistas e populistas sabem muito bem
explorar situações de limite. Porém, não
tenham dúvidas. Cedo ou tarde algum líder
democrático autêntico exercerá a genuína
representação da cidadania ampliada para
fazer valer seus direitos básicos, entre
os quais predomina a prerrogativa do
trabalho remunerado como fonte de sobrevivência.
Nosso desafio, sobretudo do Brasil e da
América do Sul, é construir uma
democracia social real nos trópicos. Isso
implica uma política macroeconômica de
matriz keynesiana, complementada por políticas
setoriais específicas também de inspiração
keynesiana. É a isso que estamos
dedicados, um grupo de especialistas de
dentro e de fora do Governo, trabalhando
no projeto Cidade Cidadã, que em algum
momento pretendemos levar aos níveis
superiores de Governo e ao Presidente
Lula, o mais apto de todos os nossos líderes
históricos para implementá-lo. Nossa idéia
é materializar essa iniciativa através
de um amplo concurso de instituições e
personalidades da sociedade civil e política,
a fim de que reflita um grande consenso
nacional.
Não entrarei em detalhes aqui, pois a
síntese do projeto já foi exposta na
sessão de ontem no BNDES. Quero apenas
acentuar seus objetivos básicos: reduzir
efetivamente o desemprego, sobretudo entre
os não qualificados; criar equipamentos
urbanos de natureza social nas periferias
sociais metropolitanas; melhorar as condições
de habitabilidade nas periferias sociais
das metrópoles; e dar uma perspectiva de
vida a centenas de milhares de jovens, de
forma a reduzir eficazmente os problemas
de criminalidade e segurança pública. Já
estamos de acordo que o programa deve ter
um viés significativo em favor da mulher
das periferias sociais metropolitanas, que
carrega uma carga desumana de trabalho não
remunerado.
No meu entender, o Projeto Cidade Cidadã
abre uma perspectiva concreta de aplicação
de uma política macroeconômica
keynesiana no Brasil, voltada para a busca
do pleno emprego, tal como prescreve o
Art. 170 da Constituição Cidadã.
Observem que não falamos em
financiamento: o custo estimado poderá
estar entre cerca de 0,5% e 1% do PIB, da
mesma ordem de grandeza orçamentária dos
três países onde programas similares estão
sendo aplicados, ou seja, Argentina, Índia
e África do Sul. É perfeitamente
compatível com o esforço fiscal
preconizado nas Metas do Milênio das Nações
Unidas, de que o Brasil é signatário.
Temos gordura para isso no superávit primário,
sem qualquer risco de inflação. Teremos
ainda mais gordura se a taxa básica de
juros for reduzida, criando uma folga
fiscal adicional no orçamento público.
Em tempos de cidadania ampliada, o
trabalho dignamente remunerado não é
apenas um direito: é um atributo anterior
ao direito, uma prerrogativa cidadã. Nele
se funda o equilíbrio da sociedade,
conciliando democracia e capitalismo. Nos
termos fundamentais da Constituição da
República, o direito ao trabalho,
viabilizado por políticas de busca do
pleno emprego, pode ser interpretado como
a contrapartida necessária do direito à
propriedade privada também garantido
constitucionalmente. É assim que o
entendemos. Portanto, a vocês que estão
aqui, desempregados, líderes de
comunidades periféricas, sindicalistas: não
estamos fazendo uma concessão quando
propomos o projeto Cidade Cidadã. Estamos
atendendo a um direito básico seu.
Obrigado.
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