20 de maio de 2008

SIMPÓSIO PROJETO CIDADE CIDADÃ

(1) Política de pleno emprego como prerrogativa da cidadania e base da estabilidade da democracia ampliada

Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Filosofia, 10/05/08

J. Carlos de Assis
UEPB/BNDES/Instituto Desemprego Zero

A questão do alto nível de desemprego se tornou central no debate econômico a partir de Keynes, o maior economista do Século XX, durante a Grande Depressão dos anos 30. Voltou à baila neste século, a partir da constatação de que a agenda neoliberal das três últimas décadas, de privatização e de liberalização financeira, em muitos países – inclusive no nosso, assim como em quase toda a América Latina - não resolveu, e provavelmente agravou, o problema do desemprego.

Contudo, a questão do alto desemprego transcende a economia profissional e entra profundamente no terreno político. Não reclama apenas uma agenda de política econômica para ser enfrentada. Reflete, antes disso, escolhas que estão no nível da economia política. Mais: diz respeito, profundamente, ao conteúdo da própria democracia. Nesse sentido, e tendo em vista as condições contemporâneas do Brasil e da América Latina, a questão do desemprego evoca a filosofia política do grande filósofo social alemão Johann Fichte, na virada do século XVIII para o século XIX.

Fichte se perguntava, já naquela época, como era possível estabilidade democrática numa sociedade ancorada no princípio da propriedade privada, se se concedia, ou era conquistado, o direito de cidadania também dos não proprietários. É que, desde a primeira Convenção da Revolução Francesa, o direito à propriedade privada se ergueu como um anteparo de proteção do indivíduo diante do poder do Estado. Por razões ainda mais óbvias, o direito à propriedade privada foi o pilar sobre o qual se construiu o sistema capitalista. Contudo, que direito tinha aquele que não tinha propriedade privada diante daquele que tinha?

Numa situação de cidadania limitada, como aconteceu entre os gregos, era perfeitamente possível conciliar democracia e propriedade privada. Aliás, “demo” era a palavra grega para o lote básico de propriedade da terra, desde Sólon. A Revolução americana, nos seus primórdios, era também uma democracia de proprietários. No entanto, a história do século XIX e das primeiras décadas do século XX foi a história da ampliação dos direitos de cidadania, sintetizada esta no poder eleitoral de escolha dos governantes. Os não proprietários  começaram a votar em massa. E começaram a exigir direitos. Não por acaso, foi um século e quase meio de instabilidade política, pelo confronto entre a pressão crescente das massas e a resistências das classes dominantes conservadoras.

De fato, a contradição entre democracia capitalista de cidadania ampliada, antecipada por Fichte, e a realidade social de imensos contingentes de não proprietários dispostos a fazer valer seus direitos, esteve por trás de todos os grandes movimentos políticos daquele período. A solução original de Marx para ela foi separar o conceito geral de propriedade privada do conceito específico de propriedade dos meios de produção, postulando a coletivização ou estatização destes últimos. A sociedade imaginada seria uma democracia política de não proprietários, em forma perfeitamente igualitária.

Entretanto, a experiência do socialismo real, como a conhecemos, liquidou com a democracia política. É verdade que sua simples existência na história contribuiu para a percepção, nas democracias capitalistas, da possibilidade de uma solução concreta para a contradição mencionada entre propriedade privada e democracia de cidadania ampliada. O não proprietário é o que tem como fonte de sobrevivência apenas a força de trabalho remunerada. Os ciclos capitalistas criavam situações de alto nível de desemprego, levando milhões de trabalhadores à virtual indigência. Qual a saída?

A saída genial formalizada por Keynes – embora não inventada por ele, mas pelos formuladores do programa New Deal contra a Grande Depressão nos Estados Unidos - foi a de regular o ciclo capitalista, mediante uma firme intervenção do Estado no estímulo à demanda efetiva, pelo recurso a grandes déficits públicos produtivos. Isso conciliava propriedade privada, democracia e pleno emprego. E foi a fórmula que, aplicada principalmente nos Estados Unidos pelo New Deal, diante da Grande Depressão, e estendida à Europa Ocidental nos vinte e cinco anos gloriosos do pós-guerra, produziu o mais elevado estágio de civilização tecnológica e de desenvolvimento social que conhecemos.

O que houve então para que o keynesianismo, essa agenda de economia política absolutamente vitoriosa no Ocidente e no Japão, viesse a ser contestada a ponto de ser relegada como anacronismo nas décadas triunfantes do neoliberalismo? A meu juízo, a razão é simples: o keynesianismo, do ponto de vista social, foi vítima de seu próprio sucesso. A sociedade afluente norte-americana, européia e japonesa, produto de políticas keynesianas, perdeu o medo do desemprego e adquiriu o gosto do rentismo planetário. Não foi uma questão de ideologia. Foi o resultado de uma realidade sócio-econômica. Os ricos e emergentes, cada vez mais numerosos, passaram a cuidar dos próprios interesses, indiferentes à parcela, considerada pequena, da sociedade exposta às crises de desemprego e de subemprego.

No quarto de século de ouro do pós-guerra, não houve, nos Estados Unidos, na Europa Ocidental ou no Japão, uma única situação de desemprego generalizado. Ao contrário, houve enriquecimento contínuo das classes médias, que aos poucos se tornavam hegemônicas no quadro eleitoral. Proprietários de riqueza líquida, esses afluentes passaram a temer, especialmente, a instabilidade monetária, sobretudo depois que a inflação norte-americana levou à ruptura dos acordos de Bretton Woods, com a conseqüente flutuação das moedas, fonte principal da instabilidade.

Não vou repetir uma história bem conhecida, mas às vezes nos escapa o quão incômodo é para um proprietário de riqueza líquida a flutuação de moedas, empurrada por diferenciais de taxas de inflação entre os países. Os anos 70 foram o exemplo conspícuo de tal instabilidade. Na Europa Ocidental, o resultado dela foi a formação de um grande consenso político, apoiado no poder eleitoral sobretudo dos afluentes, pelo aprofundamento do Mercado Comum, pela formação da União Européia e, sobretudo, pela criação da moeda única, o euro, que eliminaria pela raiz as causas da instabilidade monetária.

É justamente aqui que se encontra a gênese do neoliberalismo, ou da reemergência do liberalismo, como ideologia e prática vitoriosas dos anos 80 para cá. É que a União Européia não é um Estado, mas uma união de Estados. Sua moeda, diferente da moeda cartal analisada por Keynes, não tem uma vinculação fiscal: é produto exclusivo de um acordo monetário, uma mônoda. Para ancorá-la em algum lugar, que não seja o poder emissor de um Estado único, imaginaram um esquema formal que amarra rigidamente as políticas fiscais dos Estados membros, na direção exclusiva da contração da economia, o Tratado de Maastricht.

Não é surpresa que a Europa do euro esteja estagnada, pois as “saudáveis” políticas fiscal e monetária do bloco não lhe dão muito oxigênio para o crescimento. Contudo, isso não significa que os afluentes europeus, maioria no quadro eleitoral, estejam insatisfeitos. São investidores no mundo com uma moeda forte. Claro que há um alto nível de desemprego pelos padrões históricos. Entretanto, a despeito da pregação neoliberal, seus sistemas de proteção social ainda funcionam muito bem. Não há contradição aguda entre cidadãos e proprietários. A maior evidência disso é que há alternância de poder partidário, embora mantendo-se a economia política básica e a política econômica básicas.

E nós da América Latina, nós do Brasil? Nós importamos a ideologia e as práticas neoliberais, mas não seu sistema social de remota inspiração keynesiana. Não há dúvida que somos uma democracia de cidadania ampliada, onde analfabetos e até menores de 16 anos votam. Sim, porque temos liberdade de expressão, escolhemos livremente nossos candidatos nas eleições regulares, temos alternância partidária do poder, e a manipulação de mídia a que estamos submetidos não é diferente de qualquer outra democracia no mundo. Entretanto, a política macroeconômica neoliberal que temos praticado produziu as maiores taxas de desemprego e de subemprego de que temos notícia, embora ligeiramente cadentes nos dois últimos anos, sem que tenhamos um eficiente sistema de proteção social de suas vítimas.

Aqui, estamos no limite de uma crise social que pode levar a situações de alta instabilidade democrática. Ainda não temos, depois do fracasso do socialismo real, uma vertente ideológica ou partidária que capitalize a insatisfação subjacente no quadro social, mas temos elementos de degeneração do quadro social que produzem um sentimento geral de insegurança que, sobretudo nas metrópoles, significa uma restrição objetiva às nossas liberdades e à nossa democracia. Em especial a partir de uma visão prospectiva, não há um de nós que veja com tranqüilidade o destino de centenas de milhares, milhões de jovens até, sem qualquer perspectiva de um desenvolvimento saudável no horizonte imediato e de médio prazo.

A meu ver, estamos sob o imperativo de uma política macroeconômica tipicamente keynesiana para conciliar o direito de propriedade, fonte de tranqüilidade dos ricos, com o direito a uma ocupação remunerada, única fonte de tranqüilidade dos não proprietários. Numa democracia de cidadania ampliada, como a nossa, o alto nível de desemprego nos empurra inexoravelmente para o conflito político, que de alguma forma está mascarado por razões peculiares que não examinarei aqui. Diga-se de passagem que frequentemente não há relação entre as causas subjacentes e o modo específico de um conflito político. Todos os oportunistas e populistas sabem muito bem explorar situações de limite. Porém, não tenham dúvidas. Cedo ou tarde algum líder democrático autêntico exercerá a genuína representação da cidadania ampliada para fazer valer seus direitos básicos, entre os quais predomina a prerrogativa do trabalho remunerado como fonte de sobrevivência.

Nosso desafio, sobretudo do Brasil e da América do Sul, é construir uma democracia social real nos trópicos. Isso implica uma política macroeconômica de matriz keynesiana, complementada por políticas setoriais específicas também de inspiração keynesiana. É a isso que estamos dedicados, um grupo de especialistas de dentro e de fora do Governo, trabalhando no projeto Cidade Cidadã, que em algum momento pretendemos levar aos níveis superiores de Governo e ao Presidente Lula, o mais apto de todos os nossos líderes históricos para implementá-lo. Nossa idéia é materializar essa iniciativa através de um amplo concurso de instituições e personalidades da sociedade civil e política, a fim de que reflita um grande consenso nacional.

Não entrarei em detalhes aqui, pois a síntese do projeto já foi exposta na sessão de ontem no BNDES. Quero apenas acentuar seus objetivos básicos: reduzir efetivamente o desemprego, sobretudo entre os não qualificados; criar equipamentos urbanos de natureza social nas periferias sociais metropolitanas; melhorar as condições de habitabilidade nas periferias sociais das metrópoles; e dar uma perspectiva de vida a centenas de milhares de jovens, de forma a reduzir eficazmente os problemas de criminalidade e segurança pública. Já estamos de acordo que o programa deve ter um viés significativo em favor da mulher das periferias sociais metropolitanas, que carrega uma carga desumana de trabalho não remunerado.

No meu entender, o Projeto Cidade Cidadã abre uma perspectiva concreta de aplicação de uma política macroeconômica keynesiana no Brasil, voltada para a busca do pleno emprego, tal como prescreve o Art. 170 da Constituição Cidadã. Observem que não falamos em financiamento: o custo estimado poderá estar entre cerca de 0,5% e 1% do PIB, da mesma ordem de grandeza orçamentária dos três países onde programas similares estão sendo aplicados, ou seja, Argentina, Índia e África do Sul. É perfeitamente  compatível com o esforço fiscal preconizado nas Metas do Milênio das Nações Unidas, de que o Brasil é signatário. Temos gordura para isso no superávit primário, sem qualquer risco de inflação. Teremos ainda mais gordura se a taxa básica de juros for reduzida, criando uma folga fiscal adicional no orçamento público.

Em tempos de cidadania ampliada, o trabalho dignamente remunerado não é apenas um direito: é um atributo anterior ao direito, uma prerrogativa cidadã. Nele se funda o equilíbrio da sociedade, conciliando democracia e capitalismo. Nos termos fundamentais da Constituição da República, o direito ao trabalho, viabilizado por políticas de busca do pleno emprego, pode ser interpretado como a contrapartida necessária do direito à propriedade privada também garantido constitucionalmente. É assim que o entendemos. Portanto, a vocês que estão aqui, desempregados, líderes de comunidades periféricas, sindicalistas: não estamos fazendo uma concessão quando propomos o projeto Cidade Cidadã. Estamos atendendo a um direito básico seu. 

Obrigado.
(2) Síntese do Projeto Cidade Cidadã