A máxima acima é utilizada
pelos que defendem a
liberalização das armas,
pois elas em si seriam
inofensivas; apenas quem as
manuseia é que representaria
risco.
No Brasil industrializado, o
BNDES talvez seja a
principal arma financeira do
arsenal disponível às
políticas públicas, a seu
turno, dos respectivos
governos federais.
Criminalizar a atuação do
Banco é, nesse sentido, a
mesma coisa que culpar as
armas pelos "crimes"
cometidos. Registre-se que
somos contra as armas e a
favor do BNDES e fazemos uso
da metáfora apenas para
ilustrar ideias opostas.
Desde a sua fundação, em
1952, o então BNDE,
posteriormente rebatizado
BNDES, teve papel relevante
na viabilidade do crédito em
apoio às políticas públicas
do país. No PND dos
militares1, assim como no
PND de Collor e FHC2, no
maior destaque às
exportações do governo Lula
e, mais recentemente, nas
medidas anticíclicas de
Mantega e Dilma, as regras
dos empréstimos de longo
prazo do BNDES sempre
refletiram tais políticas.
O país ainda era
eminentemente rural em 1952.
O Banco inicia com foco em
infraestrutura. Com mais
infraestrutura instalada,
expande suas linhas para a
expansão da indústria. Em
seguida, financia a
comercialização dos bens
industriais, com a Finame.
Na sequência, parte para a
mitigação dos impactos
sociais da urbanização
crescente. Chega a fase do
apoio à exportação e
internacionalização das
empresas do país, a inovação
e a capilaridade do crédito
de médio, longo prazo para
MPMEs. A ampliação do escopo
de atuação do BNDES reflete
o próprio desenvolvimento
econômico e social do
Brasil. A cada empréstimo
concedido, inúmeras cadeias
produtivas são movimentadas;
como as da indústria, do
transporte, dos serviços
públicos nas cidades, da
geração de energia, dos
serviços financeiros e da
educação. Todas gerando
emprego, renda, tributos e
desenvolvimento para a
nação.
As gravíssimas revelações de
corrupção da operação
Lava-Jato agravaram a
polarização política do
país. Duas empresas
legitimamente e legalmente
apoiadas pelo BNDES
revelaram-se centrais nos
esquemas de corrupção de
funcionários públicos,
partidos e políticos no
Brasil. Não foi difícil a
opinião pública ser induzida
por uma narrativa que
caracteriza o Banco como um
iceberg de ilicitudes a
serem reveladas. Tudo
resultado de um pretenso
plano de criação de
"campeões nacionais3".
Na verdade, a crise
financeira internacional de
2008 permitiu ao governo
aprofundar diversas
intervenções na economia4. E
foram várias as ações:
desonerações tributárias,
IPI zero, intervenção no
preço dos combustíveis,
redução forçada da tarifa de
energia elétrica, redução
forçada da Selic, créditos
agrícolas incentivados,
programas habitacionais
subsidiados (MCMV), créditos
estudantis (FIES), programas
de capacitação técnica (PRONATEC),
aumento dos quadros de
funcionários públicos,
programas de concessões,
grandes obras de
infraestrutura (PAC), enfim,
a ordem era expandir a
economia com recursos
públicos quase ilimitados.
Nesse contexto, ao BNDES
coube a missão de expandir o
crédito para a
comercialização de máquinas
e equipamentos, ônibus e
caminhões, investimentos
industriais, infraestrutura
e exportação. Estes
financiamentos já eram
regularmente oferecidos pelo
Banco com lastro nas
captações ordinárias junto
ao FAT5. Entretanto, uma
sequência de empréstimos do
Tesouro ao BNDES, que
totalizaram R$ 440,8 bi de
2008 a 2014, mais que
dobraram a capacidade de
emprestar do Banco6.
Ademais, foi instituído o
Programa de Sustentação do
Investimento (PSI),
empréstimos com taxa fixa e
reduzida de juros. Isto foi
viabilizado com o pagamento
ao BNDES, pelo Tesouro, de
equalização das taxas de
juros do PSI.
Além da suposta "política de
campeãs nacionais", surge ao
longo do escrutínio público
e midiático sobre as
atividades do Banco a
referência a uma
"caixa-preta". Por um lado,
caixa-preta revela a
percepção de algo reservado,
secreto ou obscuro. Por
outro, mais associado ao
mundo aeronáutico,
identifica as possíveis
causas de um "desastre". É
óbvio o profundo desconforto
do corpo técnico do Banco em
reconhecer um desastre no
fato de terem desempenhado
suas funções exatamente como
determinam a missão, visão e
valores do BNDES.
Explicar a "caixa-preta" do
BNDES é um exercício
frustrante em comparação aos
êxitos da Lava-Jato.
Importante mencionar que
mesmo na Petrobras,
funcionários concursados e
responsáveis por orçar o
valor dos serviços e obras a
serem licitadas foram
surpreendidos pela revelação
do enorme esquema de
corrupção e loteamento dos
contratos. Pelo que foi
noticiado, a Petrobras
sempre informou nos editais
das obras o valor máximo que
estava disposta a pagar,
conforme diligentemente
estimado por seus técnicos7.
Existe uma enorme diferença
entre contratar uma obra e
financiar sua realização.
Não é o Banco que negocia os
preços e condições da obra.
Aliás, é curiosa a percepção
leiga sobre o BNDES, como se
o Banco fosse um ministério
que seleciona e decide que
obras irá realizar e quem
serão as empresas
contratadas.
Indo direto o ponto, a
"caixa-preta" do BNDES, ou
seu "segredo", é a
atratividade de seus
financiamentos. E não há
nada de ilegal, imoral ou
original nisso. Via de
regra, qualquer empréstimo
de bancos de desenvolvimento
ou agências de crédito à
exportação, no mundo
inteiro, só são contratados
na medida em que os prazos
de pagamento, as carências e
as taxas de juros sejam
atraentes. Isso de forma a
viabilizar cada transação
comercial (venda de bens e
serviços) ou investimento
(construção, reforma ou
ampliação).
No caso brasileiro, onde a
taxa básica de juros da
economia foi usada para
controle da inflação, o
BNDES foi fonte perene de
crédito de longo prazo com
taxas de juros alinhadas
pela meta de inflação e não
contaminadas por ela. O
Banco sempre foi diligente e
exigente para conceder seus
empréstimos. Apenas projetos
sólidos, financeiramente e
juridicamente seguros, com
garantias adequadas e que
movimentem as cadeias
produtivas do Brasil são
financiados pelo BNDES8.
Na maioria dos empréstimos
para exportação de bens e
serviços brasileiros,
notadamente os empregados em
obras no exterior9, o BNDES
é garantido pelo Seguro de
Crédito à Exportação (SCE),
com recursos do Fundo de
Garantia à Exportação (FGE)10.
Isto é, o seguro recebe os
prêmios e, se o devedor não
paga, o SCE é acionado,
indeniza o BNDES e o Tesouro
assume a recuperação do
crédito11.
Dois episódios relacionados
à confidencialidade de suas
operações traumatizaram a
relação do BNDES com órgãos
de controle e com a
sociedade em geral: a
classificação secreta
atribuída pelo MDIC para os
empréstimos relacionados às
exportações brasileiras para
Cuba e Angola e a
interpretação da lei do
sigilo bancário. Ambos já
estão superados.
Em primeiro lugar, as
coberturas do SCE, nos casos
de Cuba e Angola, foram
aprovadas pela CAMEX com
soluções de contragarantias
customizadas, que poderiam
suscitar interesse de
concorrentes
internacionais12. Neste
sentido, o MDIC decidiu
classificar as duas
operações como secretas.
Coube ao Banco observar tal
classificação. Finalmente, o
ministério retirou a
classificação de secreta em
02/06/2015, permitindo ao
BNDES dar publicidade aos
termos e até divulgar cópias
dos contratos de
financiamento.
O segundo aspecto, sobre a
interpretação do alcance da
lei do sigilo bancário,
levou a que um acórdão do
TCU fosse prejudicado pela
reserva de informações
relativas a investimento da
BNDESPar. Para superar o
impasse, o Banco decidiu
proceder com uma ação junto
ao STF. A decisão da 1ª
turma, por maioria, e não
por unanimidade, esclareceu
que não deveria haver
restrição de informações ao
TCU. O BNDES não recorreu da
decisão e, protegido pela
decisão judicial,
compartilhou amplamente as
informações solicitadas e
ampliou sucessivamente as
informações disponibilizadas
em seu portal de
transparência.
Os próprios delatores da
Lava-Jato, quando se referem
ao trato com o BNDES,
reconhecem que as
negociações com o Banco
sempre foram pautadas por
critérios técnicos e rígida
formalidade. Se as empresas
recorreram à corrupção para
conquistar contratos de
obras, no Brasil ou no
exterior, ou para obter
apoio de políticos para suas
estratégias de negócios,
tais ilícitos não ocorreram
junto aos funcionários do
BNDES.
Quando mencionam o BNDES, os
delatores também informam
que parte dos pagamentos de
propina para altas
autoridades do governo eram
acertados na expectativa de
que suas demandas ao Banco
seriam, naturalmente,
favorecidas. Por outro lado,
nos mesmos depoimentos,
confirmam que nem os prazos
de análise e nem as
formalidades exigidas foram
de alguma forma
beneficiadas. E que nunca
trataram desses acertos de
corrupção no BNDES ou com a
participação de funcionários
do Banco.
Durante o período mencionado
de maior intervenção na
economia, o Banco contratou
empréstimos com centenas de
milhares de empresas
diretamente e indiretamente,
com a participação de
dezenas de bancos e demais
agentes financeiros
repassadores. Onde estão as
denúncias de ilícitos
sistêmicos no BNDES? Ao
contrário, as reclamações
são sobre as dificuldades do
Banco "quebrar um galho"
quando falta um balanço
atualizado ou uma certidão
negativa. Onde está o
projeto adequadamente
apresentado que o Banco
tenha negado porque
emprestou o dinheiro para
Cuba? Estados e municípios
que não têm projetos para
apresentar ou empresas com
restrições de crédito são os
que mais acusam o Banco de
ser injustamente "seletivo"
na concessão de seus
empréstimos. É curioso
constatar que quando um
crédito é negado por um
banco qualquer, a sociedade
reconhece que o problema
deve ser a má qualidade do
devedor. Mas quando é negado
pelo BNDES, é por não ser
"amigo do rei"?! E quando
aprovado é porque é "amigo
do rei"?!?!
Ora, se esta hipótese fosse
verdadeira, como explicar a
histórica baixa
inadimplência dos
empréstimos concedidos pelo
BNDES? E os repetidos lucros
ao longo de seus muitos
anos, os constantes
pagamentos de dividendos e
de tributos? Se os R$ 440,8
bi aportados pelo Tesouro
tivessem sido transferidos
aos "amigos do rei", como o
Banco seria capaz de pagar e
antecipar sua devolução? Se
for verdade que os números
não mentem, algo parece
estar fora do lugar quando
falam mal do BNDES.
Não é difícil encontrar
opositores às políticas de
crédito desempenhadas pelo
BNDES, nos diferentes
governos, ao longo de toda a
sua história. Mas a
legalidade e
sustentabilidade da
instituição deveriam ser
dignas de reconhecimento.
Muitas instituições e
recursos públicos foram
pulverizados no Brasil nos
últimos 67 anos. Este,
certamente, não é o caso do
BNDES.
1 Planos
Nacionais de Desenvolvimento
I (1972-1974) e II
(1975-1979)
2
Programa Nacional de
Desestatização (1990-2002)
3 Apesar
de "campeões nacionais" ser
uma expressão utilizada em
programas públicos de
política industrial ao longo
dos anos em países como
França, Coréia, Rússia,
Alemanha, etc., nunca foi
adotado oficialmente no
Brasil. Durante os governos
Lula/Dilma, os programas que
mais se aproximaram disso
foram a Política Industrial,
Tecnológica e de Comércio
Exterior (PITCE) e,
posteriormente, a Política
de Desenvolvimento Produtivo
(PDP). Ambos tiveram seus
marcos legais aprovados pelo
Congresso Nacional e sempre
contaram com a participação
de representantes da
sociedade civil.
4 Países
como Reino Unido, EUA,
Japão, Suíça e membros da
zona do Euro realizaram
intervenções para
estabilização de suas
economias em montantes
absolutamente inéditos na
história.
5 Note-se
que os empréstimos
extraordinários do Tesouro
ao BNDES não alteraram o
escopo de atuação do Banco.
6 Os
investimentos em empresas
pela BNDESPar não são
lastreados nos recursos do
FAT e nem nos aportes do
Tesouro. São fruto da gestão
e reinvestimento de sua
carteira ao longo de muitos
anos, desde 1974.
7
Recentemente, o TCU passou a
instar o BNDES a adotar um
procedimento semelhante.
Além de ser inédito em
relação aos demais bancos de
desenvolvimento e agências
de crédito à exportação no
mundo, o caso Petrobras
demonstra as limitações
desse procedimento.
8 Bens e
serviços importados não são
elegíveis ao financiamento
do BNDES, seja no Brasil ou
no exterior. Máquinas e
equipamentos necessitam de
credenciamento prévio na
Finame, conforme metodologia
própria.
9 O
exportador brasileiro é
contratado para realizar
parte ou toda uma obra de
grande porte no exterior.
Apenas os itens exportados
do Brasil são elegíveis ao
financiamento do BNDES. Em
média, estes itens
representaram 48% dos
valores totais devidos pelas
obras contratadas. Nenhuma
despesa local ou importação
de terceiros países são
elegíveis.
10O FGE,
regido pela lei 9.818/1999,
é um fundo de natureza
contábil do Tesouro
Nacional. Apesar dos
sinistros, o fundo é
superavitário, os prêmios
cobrados superam as perdas
cobertas. Ademais, o
patrimônio do FGE, isto é, o
valor destacado pelo Tesouro
para fazer frente às
obrigações do Fundo, é
sempre superior ao
atuarialmente necessário
para cobrir os riscos
assumidos.
11Desde o
final de 2016 o Brasil
integra como credor o Clube
de Paris, organização que
conduz negociações para a
recuperação de créditos
soberanos, com a
participação do FMI.
12É
bastante usual o tratamento
sigiloso sobre termos e
condições aplicados nos
instrumentos públicos de
crédito à exportação, como
praticado pela China, Índia,
Rússia e mesmo por países da
OCDE.