As especulações sobre "novos focos ou prioridades" para o BNDES se renovam a cada troca de presidente. Apesar das expectativas, o fato é que até hoje não houve redução de escopo, leque de atividades. Ao contrário, cada nova administração adicionou tarefas, setores e instrumentos. A famosa linha do tempo da apresentação institucional evidencia graficamente essa característica de contínua acumulação.
Por "administração" leia-se governo federal, Congresso Nacional e diretoria do Banco, três espaços de formulação de iniciativas de políticas e ações. Avenida Chile é um pedaço de Brasil, portanto opera em um contexto amplo. Por óbvio que seja isso, muitos analistas e comentaristas ainda alimentam a fantasia de autonomia tecnocrática dos empregados do BNDES.
A questão de fundo se refere ao "OU" versus "E". Não se trata de substituir a (má) política pela (boa) técnica. Sim, somos técnicos ao mobilizar os melhores conhecimentos e práticas para orien-tar decisões sobre recursos públicos. E, sim, de-vemos ser políticos, trabalhando com e aceitando as decisões sociais sobre prioridades de atuação. Agimos e somos agidos por vários vetores, a dita razão técnica sendo apenas um deles.
Para além dessa dimensão ontológica de organizações públicas e sua ecologia, há uma questão jurídico institucional: o artigo terceiro do estatuto do Banco diz que ele é o principal instrumento da política de investimentos do governo federal. In verbis: "O BNDES é o principal instrumento de execução da política de investimento do Governo Federal e tem por objetivo primordial apoiar programas, projetos, obras e serviços que se relacionem com o desenvolvimento econômico e social do País".
A redação do artigo deixa claro que o governo eleito tem o direito de definir as políticas prioritárias e determinar as ênfases operacionais do seu instrumento BNDES. O acessório segue o principal, resguardadas as suas especificidades bancárias e empresariais, no caso.
Outro ponto é a vagueza como a missão do Banco é definida. Não há no estatuto nem em outros documentos externos o que seja "desenvolvimento econômico e social do País". A margem para interpretação é imensa.
Seria o BNDES um "órgão de Estado", tal como as Forças Armadas, Itamaraty ou Banco Central? Parece não haver espaço para essa interpretação no normativo político institucional brasileiro. O Banco é uma agência de governo e deve obedecer às prioridades por ele definidas. Por isso devemos aprender a lidar com o governo federal, seja ele qual for, reconhecendo a política como o campo por excelência para escolhas sociais. Isso vale para o Poder Executivo e também para o Legislativo. Aprender a trabalhar a política, espaço decisório por excelência nas democracias. A fantasia tecnocrática e o isolamento geográfico e existencial são fontes importantes de nossa crise de legitimidade. Quando a esses fatores se adicionam práticas e comportamentos percebidos como arrogantes pelas contrapartes, as dificuldades de operar o contexto só crescem.
O ensimesmamento arrogante, sobre o qual falarei em próximo artigo, causou problemas graves de relacionamento. Ele também é fonte de dificuldades operacionais e de redução de efetividade. Explico. O desenvolvimento é processo intrinsecamente complexo. A gestão da complexidade requer ajustes mútuos e sucessivos entre uma miríade de atores interessados e apaixonados, que tomam iniciativas e reagem a ameaças. Saber operar em rede e em meio ao conflito é um pré-requisito para assegurar um processo efetivo de formulação e implementação de políticas. A razão tecnocrática e o insulamento geoexistencial são obviamente adversários dos princípios que asseguram a boa gestão da complexidade.
É preciso "abraçar a política" e encontrar os meios de conciliar as especificidades de nossa missão com a volatilidade da conjuntura e das paixões momentâneas. Novas atitudes e práticas devem ser adotadas, com destaque para: maior atenção aos atores e processos externos ao Banco; habilidade de negociação em posição desvantajosa; entendimento dos movimentos históricos nacionais e internacionais; operação e governança em rede (Fundo Amazônia sinaliza o caminho); e outros.
Não obstante as mudanças sugeridas, parece haver algo ainda maior, mais estrutural a ser construído. Aqui me refiro à macrogovernança do financiamento do desenvolvimento. É preciso definir uma moldura político-institucional que estabilize as expectativas dos atores políticos e dos comentaristas sobre a atuação do Banco. Adianto aqui uma hipótese de trabalho: por que não pensar em uma espécie de "lei geral do financiamento do desenvolvimento"?
Tal lei poderia definir os marcos de longo prazo (cinco e dez anos, por exemplo) que balizariam as prioridades operacionais do BNDES. Por iniciativa do Poder Executivo a partir de proposta do Banco, o Congresso Nacional aprovaria as prioridades, áreas centrais de atuação, objetivos a serem alcançados, métricas de acompanhamento e efetividade etc. Caso considere meritório, o Congresso alocaria recursos orçamentários sob a forma de subsídios explícitos. O Banco então deveria perseguir os objetivos definidos e avaliar seu desempenho segundo parâmetros preestabelecidos. Isso permitiria conciliar prioridades e negociações políticas (geralmente voláteis) com instrumentos de planejamento, respeitando a natureza estrutural da missão de um banco de desenvolvimento.
A proposta não é invenção. Instituições de financiamento ao desenvolvimento no Canadá, EUA e Alemanha realizam regulamente esse tipo de procedimento político-institucional, dele obtendo apoio político, clareza de prioridades e, eventualmente, recursos orçamentários.
Algo nessa linha parece necessário porque, em português direto, o país há muito tempo não sabe o que quer para si e tende a produzir políticas do tipo "tudo ao mesmo tempo agora". A virtual incapacidade de definir novas prioridades e desativar as "antigas" não é endêmica da Avenida Chile, antes reflete dificuldade mais ampla da sociedade brasileira.
Tal dificuldade se tornou crônica a partir da liberalização dos anos 1990. Até então, o modelo de industrialização por substituição de importações havia fornecido a macrogovernança do desenvolvimento. Não era necessário estabelecer algo como aventado acima pois a escolha estrutural de longo prazo era clara e estável. O Banco sabia qual era sua missão e o contexto produzia a disciplina necessária para sua operação.
Após a década de 90 vários elementos do modelo anterior foram abandonados, muitos foram atenuados, porém não houve definição precisa de um novo modelo dentro do qual deveria operar o BNDES. Missões tradicionais eventualmente ganharam novos nomes, mas não chegaram a ser desativadas – "adensamento de cadeias produtivas" no lugar de "substituição de importações". Governos tão diferentes como Collor, FHC e Dilma adicionaram missões ao Banco e ao padrão de desenvolvimento, sem jogar "cargas ao mar".
Economistas teóricos buscam conforto e guia nos conceitos de falhas de mercado. Não me oponho a essa abordagem, apesar de me incomodar a desconsideração da história, como se fosse um desvio em relação ao desejável. Porém apenas pergunto: em quais documentos e políticas oficiais estão definidas positivamente as falhas de mercado? Como conciliar essa normatividade teórica com o parágrafo terceiro do estatuto do Banco, com o PPA, projetos de lei dos governos e parlamentares eleitos, dentre tantos instrumentos práticos da nossa democracia?
Talvez estejamos diante de uma situação curiosa à primeira vista, mas muito frequente na história das instituições: para aumentar o espaço da razão técnica e da autonomia operacional talvez seja necessário antes de tudo alienar parte da (falsa?) autonomia política para uma macrogovernança ancorada no espaço por excelência de definição dos interesses nacionais que é o Congresso Nacional. O que talvez pareça um paradoxo pode ser apenas o reconhecimento da dualidade intrínseca e inarredável de organizações que lidam com processos complexos como o desenvolvimento.