De Maria Sílvia a Mary Kay
 

Paulo Moreira Franco
Economista do BNDES
 

Arthur Koblitz saltou na minha frente falando sobre a fala do presidente no auditório. Numa sala bastante vazia para o tipo de evento que era, Dyogo estava lá, à espera de um milagre.

Maria Silvia veio para o BNDES fazer uma revolução. Ficou só na primeira fase, a do caos e da destruição das estruturas existentes. Iniciou os processos de consultoria visando reestruturar o Banco, permitiu sem contestações que uma série de ataques à instituição vindos de elementos da área econômica do governo golpista acontecessem. Por outro lado, abriu espaço à discussão, muito embora nem sempre de ouvidos abertos. Maria Silvia foi alguém lutando contra muitas coisas, da discriminação por ser mulher num campo pesadamente controlado por homens (vejam as listas de presidentes do BNDES e do BACEN, e de ministros da Fazenda, Planejamento e Desenvolvimento: percebam o quão raro é uma mulher ocupando um desses cargos. Não acredite que seja por mera falta de talentos ou mérito) até a necessidade de atender aos interesses diversos das diferentes agendas das facções que loteavam o governo. Com o governo, aparentemente caminhando para o fim, provavelmente avisada por seus contatos no O Globo que lhe garantem uma narrativa elogiosa e vitoriosa, pulou fora. Para surpresa de muitos, Temer sobreviveu ao escândalo da J&F e o tudo indica que continuará com a mão no timão até o raiar de 2019.

Paulo Rabello chegou cá como um amigo de Temer e um cara muito mais compreensivo em relação à história do BNDES. Rabello não é um revolucionário, mas um conservador na mais simpática e talebiana concepção que o termo possa ter: o entendimento de que o passado tem lições, aprendizados, sucessos, que ele não aconteceu por acaso. Skin in the game é mais o livro que ele deveria ter referido do que Antifrágil. Mas skin in the game faltou a quem terceirizou a condução do dia a dia do Banco para poder conduzir seu processo de salvação do país, das instituições, de sabe-se lá qual moinho de vento que ele caçava pelo Brasil afora. Rabello esperneou, mas assim mesmo medidas contra o Banco que começaram em Maria Sílvia seguiram seu curso normal. E o que era um processo de consultorias distintas, com limites definidos, virou uma coisa grandiloquente e disforme, com uma reestruturação administrativa apressada, impensada. A frívola passagem de Rabello resultou em conflitos internos, aparelhamentos e oportunismos, em iniquidades e mágoas mais sérias do que as trazidas por Maria Sílvia. Como nos períodos FHC e Itamar, facções perderam o decoro, e isso não fica por isso mesmo.

O que nos traz Dyogo. Dyogo, ministro do Planejamento e presidente do Banco, é a consagração de uma lógica de administração pública onde os énarques substituem indicações “políticas” na formulação e condução da administração pública. Para quem não conhece o termo, énarques são os que estudaram na Escola Nacional de Administração francesa. Por indicações “políticas”, estou falando de pessoas cuja trajetória de vida e aprendizado se dá na experiência prática da condução de assuntos públicos e privados, e que têm seus compromissos construídos nessas trajetórias – em oposição àqueles que estudaram as doutrinas corretas, nas escolas corretas, entre as pessoas corretas, passando pela porta de entrada correta do concurso (tipo assim, nós deste prédio). Além deste traidor de classe que aqui escreve, há quem veja alguns problemas nessa substituição da experiência prática/democrática pelo credenciamento acadêmico/burocrático. Neste link do Financial Times, neste do Independent, há interessantes discussões sobre o quão danoso e excludente seria isso em França.

Dyogo, o Gestor, veio para cá com um complicado mandato: tocar um importantíssimo canto da União num governo em seus estertores, um governo sem credibilidade, sem popularidade, sem nenhum apoio concreto senão da imprensa que ele paga para acreditar. Missão inglória. Missão que alguém com um certo senso de dever assume. Por vezes senso de dever se choca com outros ditames éticos na burocracia, e é a clareza com que você sabe distinguir (e deixar claro) que não é sua vontade que faz um sobrepujar o outro a diferença salvadora. Rabello, em suas ironias sobre a devolução e a TLP, foi um bom exemplo disso, do burocrata que assume que sapos são os sapos que engole. Na simplicidade do mundo que uma visão revolucionária nutre não me lembro de sapos conscientes de Maria Silvia. Dyogo não tratou de sapos em seu discurso.

Mas vamos à parte complicada. Dyogo, aparentemente, cai na estória de que a indústria é crescentemente irrelevante, que não deveríamos nos preocupar tanto assim com seu destino. É uma visão audaz, mas longe de ser uma opinião isolada. Conheço até economista no Banco com a mesma opinião. Do ponto de vista do emprego industrial, há um elemento persuasivo de que isso possa estar certo. Do ponto de vista prático da vida cotidiana, coisas são necessárias, independentemente de estarem conectadas ou não. Coisas precisarão ser fabricadas. Ou, se não foram, importadas. Se as coisas por vezes têm que se adotar a padrões, por vezes os fabricantes de coisas podem forçar padrões. E, por vezes, o binômio entre coisa e padrão é a essência da sinergia de uma empresa, vide Apple. Vide os esforços do Made in China 2025 e da Indústria 4.0 da Alemanha para manter suas dominâncias no setor industrial. Abdicar da fabricação de coisas pode ser escolha (ou consequência) de quem tem centralidade na produção da ordem simbólica (finanças, padrões, conteúdo, código, legislação) da economia mundial, mas não de quem está na periferia desta. Achar que código é mais um tipo de coisa é um equívoco semelhante àquele praticado pelos criadores da reserva de mercado de informática.

Neste sentido, a primeira forma de se ler o Mary Kay do título. Por vezes modelos de negócios novos permitem revitalizar produtos tradicionais, gerar ganhos e eficiências que não haviam no formato anterior, tradicional. Por vezes eles são mera exploração, phishing for phools, exposição a riscos não mapeados/declarados. A possibilidade de novos negócios de alto crescimento se dá, aparentemente, por todos os lados. Vide o caso da Inditex e a revolução da fast fashion... e sua interação com a cadeia produtiva. Por outro lado, alguns desses negócios são uberização, a versão de macjob de um mundo “digital” (neoliberal) onde a força de trabalho precarizada vira capital humano precarizado. Mary Kay é um desses casos não tão cor de rosa. E se no mundo da distribuição de coisas isso acontece, no mundo do simbólico isso é exponencializado. Dyogo parece ter uma fascinação com a lenda do Vale do Silício sem se debruçar não só nas consequências econômicas, políticas e sociais desse mundo como nas próprias condições materiais onde ele ocorre, na própria especificidade de relações sociais e jurídicas que possibilitam que ali e quase somente ali determinadas coisas aconteçam.

O que me traz a um ponto que acho não ter ficado muito claro no artigo anterior. Tenho uma diferença com o Arthur quanto à questão do subsídio, do uso da palavra subsídio. E uma diferença maior ainda com aqueles que defendem que o Banco deva ser competitivo.

Uma das acusações que se fazia ao Banco na época do Luciano, crítica feita por exemplo pela OCDE, é que o BNDES faria o crowding out (expulsaria) do setor financeiro privado. Essa é uma crítica presente naqueles, como nosso ex-funcionário Márcio Garcia, professor da PUC, que questionavam os subsídios do BNDES. Se a atual Administração assume esse discurso, implícito na defesa da TLP feita por membros da PUC e do INSPER na discussão no Congresso, por que diabos temos que nos preocupar em ser mais eficientes e reduzir nosso custo de forma a continuar na frente do setor privado? Não há uma contradição nisso? Ou bem somos “competitivos” e tudo bem, ou bem “atrapalhamos”, e, se “atrapalhamos”, a nossa própria existência num espaço competitivo é danosa ao desenvolvimento desse sistema.

Tal como entendo, sendo verdade o que dizem os críticos do BNDES, eles estão certos. Não temos porque forçar uma competitividade onde o mercado provê uma situação satisfatória e competitiva para as empresas nacionais. Sinceramente, nem deveríamos atuar nesses casos, onde simplesmente substituímos fontes de recursos sem alterar o volume investido. Reza a lenda que existem casos assim, e, pelo discurso dos que querem um Banco mais competitivo, essa lenda é artigo de fé para algumas pessoas que importam neste momento da história e do BNDES. Eu sou meio ateu quanto a isso, mas já me contaram alguns milagres.

Mas a parte que pelo visto o Dyogo não entende, e que o Arthur, na sua defesa de status quo de uma taxa que estimule o investimento segundo cânones clássicos do que foi o desenvolvimento industrial do mundo metal-mecânico alimentado por energia de carbono e água, não estressa devidamente, é que no mundo contemporâneo, onde as coisas negociam(-se) sob a interação de bits, não é a diferença de taxas de juro que fará a diferença entre o investimento ou não. O relevante é quanto você pode dispor, por tempo indeterminado, de quantidades não triviais de capital sem remuneração imediata, que permita um negócio crescer, florescer, dominar – sem ser devorado e deglutido, subordinado ou destruído – numa operação que crescentemente é global. A questão não são 2% de diferença de juros; a questão são duas décadas de suporte a uma empresa que opera(rá) no vermelho. A questão não é equalização de taxas; a questão é possibilidade de mais de um bilhão de reais por ano, a fundo perdido, em operações de linhas como FUNTEC. A ilusão de que se possa operar num formato bancário tradicional, ou de que o desenvolvimento se possa fazer com pequenas e idílicas operações de pequenas empresas, é a maior e mais confortável ilusão que nos aflige a não fazer nada no momento.

E, nesse sentido, a rendição de Dyogo à esculachocracia do Sistema U, a sua aceitação passiva ao Santo Ofício da compliance brasiliense, é a própria destruição da possibilidade de realização de qualquer fantasia rósea sobre um futuro de pequenas empresas criativas brasileiras tornando-se fonte de crescimento nesta coisa indefinida chamada serviços. Não há o que fazer sem a revisão de uma ordem em que as instituições de controle do Estado viraram um câncer e o establishment da imprensa e do que passa por pensamento econômico se restringe a questionar o gasto do Estado (menos em publicidade, claro).

Mas não para por aí o problema.

Dyogo nos pediu “sebo nas canelas”! Dyogo crê, como muitos aqui dentro, que o Banco e seus funcionários precisam ir à rua, à luta, buscar o cliente aonde ele está. Como o capital humano de uma empresa de marketing multinível. Quem acha que o que fazemos é o equivalente a vender desodorante, sabonete, sabão em pó, margarina, maionese, chá, picolé – em suma, coisas – pode até se sentir motivado nisso. Mas não é o caso.

O caso é, como economista, lembrar de uma conversa que tivemos aqui com o Felipe Rezende. E como ele descreveu que o que o Brasil passava era o início de uma balance-sheet recession, um tipo de recessão motivada por excessivo endividamento de agentes privados, que passam quase uma década reduzindo sua alavancagem. Sob esse entendimento teórico o que se espera é uma baixa disposição das empresas para realizar novos investimentos, especialmente se isso envolver endividamento e a quitação de dívidas existentes. A queda nas consultas e o crescimento dos pré-pagamentos não lhes parece ser um sintoma disso?

Se estamos numa recessão de balanço não há nada que o BNDES, por si só, possa fazer. Uma solução fiscal poderia produzir algum resultado, mas o Estado brasileiro se encontra amarrado às crendices da austeridade no tocante déficit/gasto público. Mas o Banco...

Pensem em uma tempestade no mar. Você não luta contra ela. Você recolhe as velas e joga a água para fora do barco. Uma hora ela passa. A situação é esta e, embora tenha simpatia pelo mandato do Dyogo de “sebo nas canelas”, erguer uma bandeira não suspende o temporal.

Esta é a segunda ilusão Mary Kay, a de que temos que vender, que temos o que vender, que sempre é uma questão de esforço e atitude da instituição. Mas houve um terceiro ponto Mary Kay em seu discurso, e um ponto onde de fato acredito que ele está correto. Ao postular que nosso problema de comunicação não é geral, com a tal da sociedade, mas sim com umas 40 pessoas (creio que tanto físicas quanto jurídicas) que (com)formam a opinião pública, Dyogo traz um entendimento pragmático do que é a política e a condução dela que só quem viveu o centro do poder em Brasília é capaz de ter claro. Não que isso ganhe eleições, mas certamente resolve melhor problemas de imagem e reputação. Que é o nosso caso neste momento. Creio que com Dyogo passaremos ao corpo a corpo com esses 40, como na fábula, 40.

 
 
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