Apenas questão de imagem e autoridade
 

Arthur Koblitz (*)
Beatriz Meirelles (**)
(*) Diretor de Assuntos Institucionais da AFBNDES.
(**) Integrante do Conselho Institucional da AFBNDES.
 

– No fundo é uma questão de imagem. Não fica bem para o BNDES ter tanto recurso de tesouraria. Para o Bradesco, para o Itaú não há problema, mas para o Banco não fica bem.

– O governo decide, temos que cumprir. Não somos acionistas do BNDES.

Três horas de apresentações e discussão com a plateia no evento Café com Conhecimento sobre a antecipação de pagamento de R$100 bilhões ao Tesouro Nacional, realizado no dia 13, permitiram que um tema aparentemente muito complexo, envolvendo questões macroeconômicas, financeiras e jurídicas, fosse condensado nas asserções acima.

Talvez o leitor esteja cético sobre esse julgamento quanto ao debate. Talvez ele não tenha ainda percebido a importância do que se está discutindo, afinal de contas, há recurso sobrando no BNDES, a dívida pública é o problema número um do país, por que não usar recursos ociosos para enfrentá-lo? Finalmente, com a análise do TCU, sabemos agora que nada há de ilegal nessa antecipação.

O problema com esse raciocínio está em parte nas definições de seus termos. Por exemplo, os recursos estão ociosos no BNDES. Como determinamos a ociosidade desses recursos? Em primeiro lugar estamos falando de recursos de longo prazo, 35 anos. De outro lado, a medida que se está utilizando para mensurar a demanda por esses recursos são projeções de curto prazo feitas no meio de uma das maiores crises econômicas da história do país. Como elas poderiam não estar contaminadas por um viés de baixa sob esse clima? Essas projeções foram feitas em condições de incerteza sobre as novas políticas operacionais que, como sabemos, serão divulgadas apenas em janeiro. Deveríamos adicionar um argumento político a essa questão também. A medida de devolução foi proposta sob orientação de um ministro da Fazenda e de um governo que não conseguiram se livrar totalmente do seu caráter temporário.

Finalmente, e mais importante do que o caráter discutível das previsões que basearam o diagnóstico de ociosidade, há o contexto no qual essa decisão está sendo tomada. O país está discutindo como enfrentar uma crise que muitos já diagnosticam como um "credit crunch", ou seja, como produto também de um encolhimento abrupto e significativo do crédito. Que papel os bancos públicos podem vir a cumprir nesse cenário? Aumentam o número de analistas que acreditam que a principal saída para a crise é um investimento maciço em infraestrutura. É esse o momento para se "descapitalizar" o BNDES? Quem fará investimento de longuíssimo prazo no Brasil de 2017?

Alguém poderia retrucar que esses recursos são úteis no BNDES, mas seriam bem mais úteis ao reduzir a dívida pública. Esse tema também foi discutido no evento. Uma primeira informação que todos deveriam ter em conta é que o lucro do BNDES é distribuído para seu único controlador, a União. E isso inclui a parte do lucro obtida com a aplicação de recursos de tesouraria. Ou seja, os recursos aplicados no BNDES que estão "ociosos" não têm custo fiscal e, portanto, não afetam a trajetória do endividamento público. A devolução dos 100 bi tampouco afeta o nível Dívida Líquida do Setor Público (anulação de um ativo e de um passivo correspondente).

Curiosamente, alguns analistas deixaram de dar importância ao indicador de Dívida Líquida, mesmo que a União possa dispor de seus ativos a qualquer momento para abater dívida mobiliária, à custa do rompimento de um contrato de longo prazo. Para esses analistas, a Dívida Bruta em proporção ao PIB é o indicador relevante, especificamente a trajetória – se explosiva ou não. Ela cresceu aceleradamente nos dois últimos anos, desacelerou nos últimos meses e chegou a 69,2% do PIB em outubro de 2016. E esse crescimento ocorreu a partir da queda no nível de atividade (queda acelerada da arrecadação tributária e redução do denominador) e dos swaps cambiais realizados pelo Banco Central, além do aumento da taxa Selic. A devolução dos 100 bi afetaria apenas o nível desse indicador (em 1,5% do PIB) e não sua trajetória, já que o custo fiscal desses recursos em Tesouraria no BNDES é zero.

Como a redução da Dívida Bruta via antecipação do pagamento dos 100 bi poderia melhorar nossa situação na atual conjuntura de crise, não foi muito explicado no evento. Sabemos apenas que alguns analistas acham que a Dívida Bruta é importante no atual cenário… e, segundo os palestrantes, o maior problema é o "risco de imagem", já que, ao contrário do Bradesco e do Itaú, Tesouraria não é o core business (sic) do BNDES.

Quem sabe o leitor possa concordar agora que os argumentos financeiro e macroeconômico não são tão convincentes como pareciam. E o argumento jurídico? Bom, aqui há uma divisão entre uma análise literal versus finalística da Lei de Responsabilidade Fiscal, como fez o TCU.  O VÍNCULO publicou mais de uma vez a opinião divergente de José Roberto Afonso sobre o tema. Na penúltima edição chegamos a entrevistá-lo. Para quem não sabe, José Roberto Afonso é uma das maiores autoridades em finanças públicas do país, um dos elaboradores da Lei de Responsabilidade Fiscal e colega aposentado do Banco. José Roberto Afonso não é advogado, será que sua interpretação divergente é apenas literal?

Revisto o argumento principal que apresentamos, podemos entender as citações com que iniciamos o artigo. Talvez alguns agora compreendam porque em última instância pode se dizer que o debate foi reduzido a uma questão de imagem e autoridade. Há outros argumentos difundidos na Casa de mesma ordem. Ouvimos colegas argumentando que esses aportes do Tesouro aumentaram demasiadamente a visibilidade do Banco, no fundo essa é a razão para os ataques que estamos sofrendo de vários segmentos da mídia convencional e de blogueiros.

Esse, ao nosso ver, é um julgamento ingênuo. Os ataques ao BNDES têm origem mais profunda, em termos de interesse e ideologia. O Brasil é talvez o único país da América Latina que manteve bancos públicos com uma presença decisiva, eventualmente preponderante. O discurso de "normalização" do Brasil passa necessariamente pela redução substancial desses bancos públicos. Toda discussão na Casa hoje passa por essa perspectiva de que há que se abrir espaço para o setor privado financeiro, como se o comportamento dos bancos públicos e não a realidade das taxas de juros no país fosse a razão para a atuação tímida dos bancos privados no mercado de crédito. Não há espaço para desenvolver mais sobre o tema do interesse. Quanto à ideologia, recomendamos que o leitor consulte um vídeo apresentado por Persio Arida em 2010 (https://www.youtube.com/watch?v=P8I9q7tm95s). Vale consultar também o debate entre Persio Arida e Ernani Teixeira, ou alguns artigos do economista Marcos Lisboa, do Insper.

É isso que se entende por fim de decisões políticas, pelo reino das decisões técnicas?

A história do BNDES é também a história da busca da instituição por fontes de financiamento adequadas. Em 2008 estava claro que as fontes garantidas pela Constituição de 1988, o FAT, encontrava-se no seu limite. Discutíamos capitalizações pelo governo federal, retenção de dividendos, quando a conjuntura trazida pela crise de 2008 levou à decisão dos aportes do Tesouro.

Com a devolução dos 100 bi, a atual Diretoria entra definitivamente para a história do BNDES, como a primeira a reduzir o funding da instituição. Uma pequena incursão pela história do Banco vai mostrar que esse é um feito notável, historicamente falando, é claro.

 
 
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