OPINIÃO

Trinta e cinco anos

Fabio Giambiagi

 Economista do BNDES

 

"Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas" (Nietzsche)

Daqui a alguns meses, farei 35 anos de BNDES. Ingressei no Banco quando o presidente da República ainda era o general João Batista Figueiredo, o que significa que ainda era a época do regime militar. O que também significa, em outras palavras, que sou um dinossauro. Nestes 35 anos, vi de tudo. Ao todo, tive 25 presidentes do Banco. Assisti ao fim dos governos militares, à Nova República, ao liberalismo de Fernando Collor e de Eduardo Modiano (de quem tive a honra de ser assessor), à confusão da gestão de Itamar Franco, ao Plano Real e os anos FHC, aos 13 anos e meio de gestão do PT e às mudanças ocorridas depois de 2015, até os últimos meses. O auge e a decadência dos desembolsos – e também do prestígio da instituição. Em 1984, ainda cheguei a assistir a alguma palestra de alguns dos fundadores das ideias seminais da origem do BNDES, personagens, à época, na altura dos seus 70 ou 80 anos de vida. Agora, fecho esse ciclo com outro presidente da República de origem militar, mas num contexto democrático. Uma vida, enfim.

Crepúsculos se prestam a balanços e eles, em geral, não costumam ser muito positivos. Não fugirei à regra. O que resta disso tudo? Em primeiro lugar, o mais positivo, sem dúvidas: o convívio. Tive o prazer de conhecer muitos servidores públicos exemplares, da estirpe de Pedro Malan, ainda que menos conhecidos. Destaco, como símbolo, Irimá da Silveira, o "Dr. Irimá", de quem os mais velhos talvez se lembrem. Quando ingressei no Banco, era a referência maior da FINAME, numa época em que ela era uma entidade separada, reverenciada como "carro chefe" da instituição. Lembro-me da impetuosidade com que em conjunto com mais três assessores – todos jovens – de Modiano nos dirigimos ao Irimá, em 1990, crentes que estávamos sendo porta-vozes dos novos tempos, com a arrogância típica da idade. Ele, em nenhum momento, se portou como o representante da resistência diante do avanço de novas forças. Deu-nos, com paciência, uma aula de boa educação, civilidade, serviço público – e de BNDES. Todos os quatro, então jovens assessores, guardamos essa lição para toda a vida. Viramos grandes amigos dele, tentando aprender um pouco da sua sabedoria de velho burocrata weberiano. Tanto Modiano como Irimá já se foram. Deixaram belos exemplos, cada um a seu modo.

O segundo legado pessoal é a expertise. Não conheço outra instituição no Brasil onde, num único espaço físico, se tenha tanto conhecimento de tantas coisas variadas. Quem trabalha no BNDES tem o privilégio de um dia poder almoçar com um amigo e ouvir uma aula sobre aeroportos, no dia seguinte aprender com outro sobre derivativos financeiros, no terceiro escutar um colega que trabalha com a Embraer falar duas horas sobre a indústria de aeronaves de médio porte – e assim sucessivamente. Qualquer autoridade de Brasília que quiser recrutar um assessor sobre qualquer coisa encontrará no BNDES pelo menos duas ou três pessoas especialistas no tema. É um ativo do país.

Finalmente, o terceiro legado: em 35 anos de BNDES, nunca escutei dizer de algum colega: "esse levou bola para aprovar um projeto". Repare-se que, mesmo com todas as acusações dos últimos anos, ninguém jamais disse que algum funcionário concursado do BNDES tenha sido corrompido para aprovar algum projeto. No país dos escândalos, não é pouca coisa. É uma distinção, uma marca institucional.

Vamos, agora, ao "lado escuro da Lua". Esclareço de antemão: pretendo dizer, de forma suave, verdades duras. Por que me resta uma inocultável sensação amarga? Em poucas palavras, porque poderiam ter sido 35 anos muito melhores. Ou, dito de outra forma, porque poderíamos estar muito acima do que estamos. E aqui não me refiro à queda dos desembolsos nem à perda de relevância da instituição. Falo de algo mais triste: a percepção de que, como grupo, não agimos como deveríamos ter atuado para fazer jus à reputação de sermos uma ilha de excelência. Somos, a rigor, um arquipélago de ilhas – mas o conjunto compõe um todo certamente muito aquém da soma das partes. Há um nome para isso: "falácia de agregação" (ou "de composição").

Há duas coisas que se entrelaçam e que explicam boa parte de nossos problemas.

Primeira questão. Recebemos empréstimos que alcançaram um estoque de mais de R$ 500 bilhões, destinados a financiar uma ação anticíclica objeto de diversos questionamentos. Já se disse que a dose é que faz o veneno e esse foi um caso em que o que era inicialmente correto perdeu sentido depois, embora nesta altura caiba enfatizar que uma parcela expressiva desses recursos foi devolvida entre 2016 e 2018. A preços de 2019, os desembolsos do BNDES, no auge, alcançaram dimensões da ordem de R$ 300 bilhões/ano. Era uma política de Governo? Era. Legítima? Sim. Boa? À luz dos resultados, é difícil argumentar favoravelmente, ainda que haja uma controvérsia acerca de que instrumentos deveriam ter sido adotados e para perseguir quais objetivos. Poderíamos, como organização, termos tentado manifestar objeções? Creio que, hoje, muitos desconfiam que teria sido saudável. Ninguém discute que políticas de Governo devem ser acatadas, mas o fato é que essa política nos criou um dano de imagem do qual só recente e timidamente estamos começando a nos recuperar.

Segunda questão – e aqui quero ir no cerne do problema acima apontado e que encontra raízes profundas e longínquas. Defendemos e pregamos a inovação, mas será que a praticamos internamente? Algumas das cabeças mais criativas que conheci nestes 35 anos – alguns deles, meus amigos – foram embora cedo do Banco – e penso que não tenha sido por acaso. Mesmo que o problema não seja exclusividade nossa e afete outras grandes empresas, precisamos nos formular uma pergunta incômoda e crucial: por que, repetidamente, temos gerado uma grande frustração profissional em tantos talentos que ingressaram no Banco ao longo do tempo? Sejamos francos: todos os leitores da instituição sabem que isso é um fato. Com exceção de iniciativas recentes como o IdeiaLab, que merecem ser estimuladas, será que, historicamente, no decorrer das décadas, o processo de promoção tem estimulado adequadamente aqueles que, usando o velho jargão, gostam de "pensar fora da caixa" e a desafiar verdades supostamente constituídas? Somos burocratas que temos o dever de obedecer ao controlador, o que é correto, mas temos sinalizado aos nossos jovens que desafiar o pensamento dominante pode ser uma característica positiva? Sabemos qual é a resposta. O problema disso é que nesse caso, como instituição, ficamos a reboque dos acontecimentos – e nunca nos antecipamos a eles. Aqui, sugiro reler a epígrafe de Nietzsche no começo do artigo: "não há fatos eternos". Toda baia do Banco deveria ter um pequeno cartaz: "Obedeça com moderação".

Aos desafios. Eles são imensos. O BNDES mudou muito nos últimos tempos, mas há uma adaptação que ainda precisa ocorrer: precisamos nos ajustar a um contexto onde nossa estrutura é mais ou menos a mesma que a de 10 anos atrás, quando rodávamos, a preços atuais, com desembolsos que eram quatro vezes os de hoje. Ao mesmo tempo, é importante evitar que os erros do último PDV, com a perda excessivamente rápida e intensa de senioridade que ele trouxe, se repitam e tragam prejuízos à casa.

Há três palavras que sintetizam o espírito com que precisamos encarar os próximos anos para superar a crise: motivação, inovação e liderança – mas de forma a deixar as energias criativas fluir. Se o BNDES se tornar uma instituição que terá que assumir mais riscos – e terá que fazê-lo, sim –, precisamos deixar de ter medo de errar, de ter receio de contrariar a tendência dominante, de ficarmos paralisados pela possível reação dos órgãos de controle. Ao mesmo tempo, isso implicará ter um engajamento em parceria com estes, para que entendam que a instituição precisará ter a flexibilidade necessária para que os funcionários tenham a tranquilidade de saber que algumas operações poderão dar errado – porque no capitalismo é assim que os mercados funcionam em um mundo de riscos – sem que tal fato signifique que isso seja um indício de irregularidade. Essa parceria é possível.

Em resumo, temos que agir. Se a maioria ficar aqui pelo salário, nosso futuro será sombrio – e qualquer leitor perceberá que estou usando um eufemismo. Já se a instituição considerar que há um país que precisa fugir da "armadilha da renda média" e que um banco de desenvolvimento tem um papel a desempenhar para isso; e se, nele, o staff entender que faz sentido trabalhar todo dia, como diz meu amigo Pedro Iootty, "com sangue nos olhos e faca nos dentes", o futuro ainda reservará um espaço para nós. Espero ainda estar junto durante parte dessa travessia.

 

 

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