Opinião

Edição nº1352 – quinta-feira, 4 de julho de 2019

Decifra-me ou te devoro

Celso Evaristo Silva

Funcionário do BNDES

Fico acordado noites inteiras

Os dias parecem não ter mais fim

E a esfinge da espera

Olhos de pedra sem pena de mim

Faz tanto frio, faz tanto tempo

Que no meu mundo algo se perdeu

Te mando beijos

Em outdoors pela avenida

Você sempre tão distraída

Passa e não vê, e não vê

("Seguindo Estrelas" - Herbert Vianna)

O governo federal, com sua equipe enigmática e excêntrica, representa a materialização do rebotalho de ideias estapafúrdias, rançosas, ajuntadas a esmo, para servir de esteio ideológico (tão frágil quanto pretensioso) a um "projeto" de país cuja resultante – conscientes seus calculistas disso ou não – é realizar a autofagia nacional mais estupenda já assinalada aqui e alhures. Isso não se iniciou com ele, diga-se, mas esse governo serve de estuário a tal processo entrópico acelerado.

Exemplo único na história, estamos decididos a guerrear contra nós mesmos até a autodemolição – tijolo por tijolo num processo ilógico:

• Retiramos direitos sociais em troca da ilusão naif do empreendedorismo individual autossustentável;

• Precarizamos relações de trabalho com ampla perda de produtividade e empregos formais, transformando trabalhadores em biscateiros desempregados e desalentados;

• Atacamos instituições de pesquisa científica renomadas, desqualificando-as sem a menor cerimônia;

• Promovemos o desmonte de empresas estatais estratégicas à espera do Godot do livre mercado, o qual, já se sabe, não virá – como não se fez presente enquanto único e principal detonador do desenvolvimento em parte alguma ao longo da história humana;

• Aceitamos estoicamente sermos colocados no papel de fornecedores de matérias-primas na divisão internacional do trabalho;

• Retrocedemos em várias conquistas da sociabilidade civilizada;

• Negligenciamos o meio ambiente, liberando mais agrotóxicos, aumentando o desmatamento e propondo a liberação da caça de animais selvagens, muitos em risco de extinção;

• Estolamos o sucesso da Embraer, no entreguismo abjeto de sua venda ao Império;

• Abrimos mão de qualquer protagonismo no âmbito da construção civil internacional quando penalizamos as empresas – sem qualquer resguardo – junto com seus dirigentes corruptos;

• Deletamos, num piscar de olhos, séculos de tradição de nossa política externa cujos pilares sempre foram o equilíbrio negocial qualificado, o arbitramento de conflitos e a busca por certa autonomia quanto ao posicionamento estratégico do país;

• Transformamos a religião num instrumento movido pelo ódio, acumulação de riqueza material e força político-partidária, inibidor da possibilidade de convivência respeitosa entre os homens e suas diferenças, onde o combate histérico à "heresia" substitui a elaboração teológica do ecumenismo maduro;

• Embaralhamos o sistema jurídico nacional com a transposição mecânica de práticas e tradições do sistema jurídico anglo-saxão para a realidade brasileira, a qual se baseia em outro sistema, o romano-germânico;

• Enfim, trouxemos a distopia a tempo presente ao trocarmos livros por armas, ao abolirmos o uso obrigatório de cadeirinhas infantis nos automóveis. Muitos outros pequenos e médios sintomas de insanidade estrutural poderiam ser descritos, mas fiquemos por aqui.

Seremos a esfinge destinada a fundir a cuca de futuros sábios e historiadores, os quais, em vão, tentarão decifrar o eco pretérito de tamanho contrassenso.

Perguntarão os estudiosos:

Em nome do que eles fizeram isso?

Alguém os obrigou?

Quais forças terrenas e/ou cósmicas se amalgamaram para compelir a tal suicídio coletivo tão patético?

Diante dessas e outras prováveis indagações a serem feitas, a única certeza presente: seremos um grande e misterioso case no futuro...

 

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