Daqui a alguns meses, farei
35 anos de BNDES. Ingressei
no Banco quando o presidente
da República ainda era o
general João Batista
Figueiredo, o que significa
que ainda era a época do
regime militar. O que também
significa, em outras
palavras, que sou um
dinossauro. Nestes 35 anos,
vi de tudo. Ao todo, tive 25
presidentes do Banco.
Assisti ao fim dos governos
militares, à Nova República,
ao liberalismo de Fernando
Collor e de Eduardo Modiano
(de quem tive a honra de ser
assessor), à confusão da
gestão de Itamar Franco, ao
Plano Real e os anos FHC,
aos 13 anos e meio de gestão
do PT e às mudanças
ocorridas depois de 2015,
até os últimos meses. O auge
e a decadência dos
desembolsos – e também do
prestígio da instituição. Em
1984, ainda cheguei a
assistir a alguma palestra
de alguns dos fundadores das
ideias seminais da origem do
BNDES, personagens, à época,
na altura dos seus 70 ou 80
anos de vida. Agora, fecho
esse ciclo com outro
presidente da República de
origem militar, mas num
contexto democrático. Uma
vida, enfim.
Crepúsculos se prestam a
balanços e eles, em geral,
não costumam ser muito
positivos. Não fugirei à
regra. O que resta disso
tudo? Em primeiro lugar, o
mais positivo, sem dúvidas:
o convívio. Tive o prazer de
conhecer muitos servidores
públicos exemplares, da
estirpe de Pedro Malan,
ainda que menos conhecidos.
Destaco, como símbolo, Irimá
da Silveira, o "Dr. Irimá",
de quem os mais velhos
talvez se lembrem. Quando
ingressei no Banco, era a
referência maior da FINAME,
numa época em que ela era
uma entidade separada,
reverenciada como "carro
chefe" da instituição.
Lembro-me da impetuosidade
com que em conjunto com mais
três assessores – todos
jovens – de Modiano nos
dirigimos ao Irimá, em 1990,
crentes que estávamos sendo
porta-vozes dos novos
tempos, com a arrogância
típica da idade. Ele, em
nenhum momento, se portou
como o representante da
resistência diante do avanço
de novas forças. Deu-nos,
com paciência, uma aula de
boa educação, civilidade,
serviço público – e de
BNDES. Todos os quatro,
então jovens assessores,
guardamos essa lição para
toda a vida. Viramos grandes
amigos dele, tentando
aprender um pouco da sua
sabedoria de velho burocrata
weberiano. Tanto Modiano
como Irimá já se foram.
Deixaram belos exemplos,
cada um a seu modo.
O segundo legado pessoal é a
expertise. Não
conheço outra instituição no
Brasil onde, num único
espaço físico, se tenha
tanto conhecimento de tantas
coisas variadas. Quem
trabalha no BNDES tem o
privilégio de um dia poder
almoçar com um amigo e ouvir
uma aula sobre aeroportos,
no dia seguinte aprender com
outro sobre derivativos
financeiros, no terceiro
escutar um colega que
trabalha com a Embraer falar
duas horas sobre a indústria
de aeronaves de médio porte
– e assim sucessivamente.
Qualquer autoridade de
Brasília que quiser recrutar
um assessor sobre qualquer
coisa encontrará no BNDES
pelo menos duas ou três
pessoas especialistas no
tema. É um ativo do país.
Finalmente, o terceiro
legado: em 35 anos de BNDES,
nunca escutei dizer de algum
colega: "esse levou bola
para aprovar um projeto".
Repare-se que, mesmo com
todas as acusações dos
últimos anos, ninguém jamais
disse que algum funcionário
concursado do BNDES tenha
sido corrompido para aprovar
algum projeto. No país dos
escândalos, não é pouca
coisa. É uma distinção, uma
marca institucional.
Vamos, agora, ao "lado
escuro da Lua". Esclareço de
antemão: pretendo dizer, de
forma suave, verdades duras.
Por que me resta uma
inocultável sensação amarga?
Em poucas palavras, porque
poderiam ter sido 35 anos
muito melhores. Ou, dito de
outra forma, porque
poderíamos estar muito acima
do que estamos. E aqui não
me refiro à queda dos
desembolsos nem à perda de
relevância da instituição.
Falo de algo mais triste: a
percepção de que, como
grupo, não agimos como
deveríamos ter atuado para
fazer jus à reputação de
sermos uma ilha de
excelência. Somos, a rigor,
um arquipélago de ilhas –
mas o conjunto compõe um
todo certamente muito aquém
da soma das partes. Há um
nome para isso: "falácia de
agregação" (ou "de
composição").
Há duas coisas que se
entrelaçam e que explicam
boa parte de nossos
problemas.
Primeira questão. Recebemos
empréstimos que alcançaram
um estoque de mais de R$ 500
bilhões, destinados a
financiar uma ação
anticíclica objeto de
diversos questionamentos. Já
se disse que a dose é que
faz o veneno e esse foi um
caso em que o que era
inicialmente correto perdeu
sentido depois, embora nesta
altura caiba enfatizar que
uma parcela expressiva
desses recursos foi
devolvida entre 2016 e 2018.
A preços de 2019, os
desembolsos do BNDES, no
auge, alcançaram dimensões
da ordem de R$ 300
bilhões/ano. Era uma
política de Governo? Era.
Legítima? Sim. Boa? À luz
dos resultados, é difícil
argumentar favoravelmente,
ainda que haja uma
controvérsia acerca de que
instrumentos deveriam ter
sido adotados e para
perseguir quais objetivos.
Poderíamos, como
organização, termos tentado
manifestar objeções? Creio
que, hoje, muitos desconfiam
que teria sido saudável.
Ninguém discute que
políticas de Governo devem
ser acatadas, mas o fato é
que essa política nos criou
um dano de imagem do qual só
recente e timidamente
estamos começando a nos
recuperar.
Segunda questão – e aqui
quero ir no cerne do
problema acima apontado e
que encontra raízes
profundas e longínquas.
Defendemos e pregamos a
inovação, mas será que a
praticamos internamente?
Algumas das cabeças mais
criativas que conheci nestes
35 anos – alguns deles, meus
amigos – foram embora cedo
do Banco – e penso que não
tenha sido por acaso. Mesmo
que o problema não seja
exclusividade nossa e afete
outras grandes empresas,
precisamos nos formular uma
pergunta incômoda e crucial:
por que, repetidamente,
temos gerado uma grande
frustração profissional em
tantos talentos que
ingressaram no Banco ao
longo do tempo? Sejamos
francos: todos os leitores
da instituição sabem que
isso é um fato. Com exceção
de iniciativas recentes como
o IdeiaLab, que merecem ser
estimuladas, será que,
historicamente, no decorrer
das décadas, o processo de
promoção tem estimulado
adequadamente aqueles que,
usando o velho jargão,
gostam de "pensar fora da
caixa" e a desafiar verdades
supostamente constituídas?
Somos burocratas que temos o
dever de obedecer ao
controlador, o que é
correto, mas temos
sinalizado aos nossos jovens
que desafiar o pensamento
dominante pode ser uma
característica positiva?
Sabemos qual é a resposta. O
problema disso é que nesse
caso, como instituição,
ficamos a reboque dos
acontecimentos – e nunca nos
antecipamos a eles. Aqui,
sugiro reler a epígrafe de
Nietzsche no começo do
artigo: "não há fatos
eternos". Toda baia do Banco
deveria ter um pequeno
cartaz: "Obedeça com
moderação".
Aos desafios. Eles são
imensos. O BNDES mudou muito
nos últimos tempos, mas há
uma adaptação que ainda
precisa ocorrer: precisamos
nos ajustar a um contexto
onde nossa estrutura é mais
ou menos a mesma que a de 10
anos atrás, quando
rodávamos, a preços atuais,
com desembolsos que eram
quatro vezes os de hoje. Ao
mesmo tempo, é importante
evitar que os erros do
último PDV, com a perda
excessivamente rápida e
intensa de senioridade que
ele trouxe, se repitam e
tragam prejuízos à casa.
Há três palavras que
sintetizam o espírito com
que precisamos encarar os
próximos anos para superar a
crise: motivação, inovação e
liderança – mas de forma a
deixar as energias criativas
fluir. Se o BNDES se tornar
uma instituição que terá que
assumir mais riscos – e terá
que fazê-lo, sim –,
precisamos deixar de ter
medo de errar, de ter receio
de contrariar a tendência
dominante, de ficarmos
paralisados pela possível
reação dos órgãos de
controle. Ao mesmo tempo,
isso implicará ter um
engajamento em parceria com
estes, para que entendam que
a instituição precisará ter
a flexibilidade necessária
para que os funcionários
tenham a tranquilidade de
saber que algumas operações
poderão dar errado – porque
no capitalismo é assim que
os mercados funcionam em um
mundo de riscos – sem que
tal fato signifique que isso
seja um indício de
irregularidade. Essa
parceria é possível.
Em resumo, temos que agir.
Se a maioria ficar aqui pelo
salário, nosso futuro será
sombrio – e qualquer leitor
perceberá que estou usando
um eufemismo. Já se a
instituição considerar que
há um país que precisa fugir
da "armadilha da renda
média" e que um banco de
desenvolvimento tem um papel
a desempenhar para isso; e
se, nele, o staff
entender que faz sentido
trabalhar todo dia, como diz
meu amigo Pedro Iootty, "com
sangue nos olhos e faca nos
dentes", o futuro ainda
reservará um espaço para
nós. Espero ainda estar
junto durante parte dessa
travessia.